Você é o chefe?” Menina machucada pergunta a motociclista mais velho: “Meu novo pai me bate.6 min de lectura

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**Capítulo 1: A Promessa na Feira**

O calor de agosto colava o colete de couro de Slate às suas costas. Era um dia péssimo para uma feira, ainda pior para uma campanha de doação de brinquedos. Aos 62 anos, o presidente do clube de motociclistas “Salvadores de Ferro” detestava algodão doce, o grito agudo dos feirantes e, sobretudo, ser encarado pelos “bons cidadãos” daquela pequena cidade do interior de Portugal.

Seus 27 homens — os “Ferro 27”, como o jornal local os chamara certa vez — estavam espalhados, seus coletes com patches contrastando com as cores pastel da feira. Não estavam ali por diversão. Estavam porque o estatuto do clube exigia: um evento beneficente por trimestre. Desta vez, era recolher ursinhos de pelúcia num caixote empoeirado ao lado de uma barraca de “Adivinhe Seu Peso”.

Slate, cujo nome verdadeiro — Eduardo Taveira — só era usado pela autoridade fiscal há trinta anos, encostou-se numa barraca de cachorros-quentes, braços cruzados. Seu rosto era um mapa de sol e vento. A barba, mais branca do que preta. Era um homem imponente, e sabia disso. Mas naquele dia, sentia-se apenas velho.

Eram dias assim, cercado de crianças gritando e famílias perfeitas, que o fantasma de sua irmã, Catarina, se aproximava mais. Era uma lembrança frágil, de tranças e um dente faltando na frente. Ele tinha dezesseis anos, grande para a idade, mas não grande o suficiente. Não forte o suficiente para impedir seu pai. Quando os serviços sociais finalmente intervieram, Slate já era velho demais para ir para um abrigo, e Catarina… desapareceu. Engolida pelo sistema. Passara décadas procurando-a, sem sucesso. Falhara em sua única missão: protegê-la. Os Salvadores de Ferro, o clube, sua vida… tudo não passava de um barulho ensurdecedor para distraí-lo daquele silêncio terrível.

— Com licença.

Slate não se mexeu. Estava acostumado a que as pessoas evitassem chegar perto.

— Com licença, senhor.

A voz era pequena, clara, e vinha da altura do seu joelho. Ele olhou para baixo.

E então a viu. Não estava chorando, como a criança perdida no carrossel. Não estava rindo. Estava apenas… parada. Devia ter uns oito anos, pequena para a idade, com cabelo castanho ralo e uma camiseta barata, duas vezes maior que ela.

E um olho roxo.

Não era um hematoma novo, roxo e vermelho. Era amarelado, quase verde, daqueles que levam dias para sarar. Havia marcas antigas em seus braços também, como se alguém a tivesse agarrado com força.

O sangue de Slate gelou. Não descruzou os braços, mas todo o seu corpo ficou tenso. Já vira aquele olhar antes. No espelho, em sua mãe. Em Catarina.

A menina não se encolheu sob o olhar dele. Leu o patch “Presidente” em seu colete.

— O senhor é o chefe? — perguntou. Sua voz era plana, sem nenhuma inflexão infantil.

Slate sentiu um nó na garganta. Pigarreou, o som saindo rouco.

— Sou.

Ela acenou com a cabeça, como se confirmasse um fato. Olhou para seu rosto, os olhos — um castanho claro, o outro inchado — buscando algo.

— Meu padrasto me bate. E à minha mãe também.

O mundo ao redor de Slate dissolveu-se. A música, o cheiro, o calor… tudo sumiu. Só havia aquela criança, parada no meio da própria ruína, falando como se comentasse o tempo.

Ele quis rugir. Quis encontrar o tal “padrasto” e quebrar cada osso de suas mãos. Quis pegar a menina, colocá-la na moto e fugir até esquecer onde era a fronteira.

Mas não podia. Tinha 62 anos, não 22. E aquilo não era um problema que se resolvia com violência.

Finalmente, descruzou os braços. Agachou-se, um movimento lento e doloroso para seus joelhos velhos. O couro rangeu. Agora, estava no nível dela. Viu Catarina, escondida no armário, implorando para que ele ficasse quieto.

— Como você se chama, miúda? — sua voz saiu mais áspera do que pretendia.

— Mariana.

— Certo, Mariana. — Não sabia o que dizer. Era presidente de um clube, líder de homens rudes. Negociava com gangues rivais e enfrentava a polícia. Mas não tinha ideia do que fazer ali.

Então, Mariana fez a pergunta que partiu seu mundo.

— O senhor quer ser meu pai?

Não era um pedido. Era uma proposta. Um apelo desesperado de quem já não tinha esperança. O coração de Slate, um pedaço de couro velho que ele achara ter parado de funcionar anos atrás, rachou. Viu tudo naquele instante — o futuro que poderia dar a ela e o passado do qual não escapava.

Não podia ser seu pai. Mas podia ser outra coisa.

— Não, miúda — disse, voz embargada. — Não posso ser seu pai.

Viu o brilho de esperança nos olhos dela se apagar, e aquilo quase o matou.

— Mas — continuou rapidamente — posso ser seu amigo. Um amigo que… impede os outros de serem maus.

Ela apenas olhou.

— Ele… ele me assusta — sussurrou, a primeira pitada de medo infantil em sua voz. — Assusta a minha mãe. Diz que é importante. Diz que ninguém vai acreditar em mim.

— Eu acredito — Slate afirmou, e a convicção em sua própria voz o surpreendeu. Tirou do bolso do colete um caderno de couro gasto e uma caneta. Arrancou uma folha em branco.

— Este é o meu número — disse, rabiscando. — Meu número pessoal. Não é do clube. É meu. — Entregou-lhe o papel, que mais parecia um guardanapo. — Se ele algum dia te assustar. Se você se sentir em perigo… liga para este número. Dia ou noite. Não importa. Você me liga. Nós viremos.

Enfatizou o “nós”. Olhou por cima do ombro. Dois de seus homens, “Padre” e “Touro”, haviam se aproximado, parados como guardiões de couro.

Mariana olhou para o guardanapo. Para os dois homens. E então, de volta para Slate.

Pela primeira vez, sua expressão mudou. Um pequeno aceno, quase imperceptível. Dobrou o papel com o cuidado de quem lida com um diamante e enfiou-o no bolso do short.

— MARIANA! Mariana, onde você está?

Uma voz feminina, estridente de pânico. Uma mulher magra, com olhos arregalados de medo, corria em sua direção. Atrás dela, um homem de camisa pólo e calça cáqui, sorridente. Parecia saído de um comício.

— Mariana, querida, não faça isso… meu Deus — a mulher parou, tapando a boca ao ver Slate e seus homens.

— Aí está você! — o homem disse, sorriso intacto. Pôs a mão no ombro de Mariana, agarrando com força. — Preocupou-nos, docinho. O que está fazendo falando com… estes senhores?

O desdém na voz dele cortava como lâmina. Slate levantou-se devagar, pairando sobre o homem.

— Ela estava perdida — rosnou.

— Bem, obrigado por encontrá-la — o homem disse, sorriso tensionado. Era o Sr. Almeida, um vereador novo na cidade, um “pilar da comunidade”. Slate já vira seu rosto em placas eleitorais. — Nós cuidamos daquiE no final, enquanto Mariana segurava seu troféu e a rosa, Slate percebeu que, às vezes, a redenção vem disfarçada de uma criança pequena com um olho roxo.

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