Uma mendiga e a marca que parou o tempo do bilionário6 min de lectura

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A voz era como uma lâmina cortando o vento, forte e desesperada, tão fria que mal se ouvia.

“Senhor? Por favor… senhor, precisa de uma empregada? Posso fazer qualquer coisa.”

Carlos Mendes não parou. Estava atrasado, os ombros tensos após uma reunião que se estendera por três horas. Caminhava, seus sapatos lustrados rangendo no cascalho da entrada, a mão já no trinco do grande portão de ferro negro. Ouvia mendigos todos os dias. Sua fortuna era um farol para os desesperados, e ele aprendera a erguer muralhas tão altas quanto as que cercavam sua propriedade.

“Por favor…”

A voz quebrou. Não foi a palavra que o fez parar. Foi o som que a seguiu. Um gemido fraco e sufocado. Não dela, mas do embrulho em seus braços.

Ele virou-se, irritado. “Não tenho dinheiro comigo. Deveria ir ao abrigo de…”.

A frase morreu nos seus lábios.

Era apenas uma rapariga, uns vinte e poucos anos. O rosto pálido, sujo de poeira urbana, marcado por uma fome tão profunda que parecia permanente. Apertava contra o peito um embrulho de mantas surradas, e de dentro, um punho pequeno e pálido agitava-se no ar. Um bebé. Sua irmã, dissera.

A mulher batia o vestido grosso e gasto contra as pernas. Não tremia; vibrava, como um fio esticado demais. Mas não desviava o olhar. Seus olhos, abertos e firmes, encontraram os dele. Não era o olhar de uma simples mendiga. Era o olhar de um soldado num campo de batalha perdido, recusando-se a render.

E então ele viu.

Logo abaixo da orelha, onde o colarinho do vestido fora puxado à força, havia uma pequena marca de nascença em forma de meia-lua.

Carlos Mendes esqueceu-se de respirar. A mão, que já tocara o portão, congelou no ferro gelado.

Ele conhecia aquela marca.

Sabia.

O mundo ao seu redor dissolveu-se. As roupas, o cascalho, a rapariga… tudo se esfumou, substituído pelo cheiro de carvão e o som de gritos. Tinha vinte e poucos anos, parado no salão sombrio dessa mesma casa, via o rosto do pai empurrado pela raiva. Sua irmã mais nova, Margarida, chorava, agarrada a uma corneta, suplicando.

“Não quer o nome desta família, pai! Não quer uma mentira! Mas não me livrarei dele!”

*Jogos familiares.*

“És minha filha. FORA! FORA!”

Lembrou-se de Margarida voltando-se para ele, os olhos suplicantes. «Carlos, por favor. Não deixes.» E ele não fizera nada. Ficara em silêncio enquanto os guardas do pai empurravam a irmã para a tempestade.

Ela desaparecera. Procuraram, claro. Gastara milhões e horas tentando encontrá-la, aliviando a culpa que se enterrara nele. Mas ela estava bem. Margarida e o bebé que se recusara a abandonar. O bebé, lembrava-se o médico dizer, tinha uma pequena marca em forma de meia-lua no pescoço.

O coração batia com tanta força que doía. Olhou para a rapariga. Não podia ser. Depois de tanto tempo… ali, parada.

“Onde arranjaste isso?”, perguntou. A voz era aguda, áspera, não a sua.

A rapariga, Leonor, pestanejou, surpresa pela mudança de tom. Puxou o colarinho do vestido com firmeza, os olhos fixos no portão, como se calculasse a chance de fugir.

“Arranjei o quê?”

“A marca. Abre o colarinho.”

A mão dela hesitou. “Isto? Eu… nasci com isto, senhor.”

As palavras atingiram-no como um soco. Agarrou-se ao portão, o metal gelado queimando-lhe a palma da mão, agarrando-se a um passado que se apresentava de repente, violentamente.

“Como te chamas?”, perguntou.

“Leonor, senhor.”

“E o bebé?”

“Beatriz. Minha irmã.” Apertou a bebé com mais força. “Senhor, desculpe o incómodo. Eu vou embora. É só… não comeu desde ontem. Posso limpar. Posso cozinhar. Posso fazer qualquer coisa…”

Beatriz. O nome da sua mãe.

Foi demais. Não era acaso. Era destino, batendo à sua porta.

“Entrem”, disse Carlos, a voz baixa, uma ordem.

Leonor recuou visivelmente. O medo era palpável. Aprendera, percebeu ele, que homens com poder e tristeza não eram fontes de ajuda—eram fontes de dor.

“Eu… senhor, só preciso de trabalho. Ou comida. Não posso…”

“Não estou a perguntar”, disse, a voz mais suave agora, mas ainda áspera pela emoção. Abriu o portão com um solavanco. “Vem. Dentro. Agora. A tua irmã está com frio.”

Hesitou mais um segundo, procurando a armadilha, o truque, no seu rosto. Encontrou apenas um homem a olhá-la como se visse um fantasma.

Agarrando a irmã, Leonor deu um pequeno passo aterrorizado.

E atravessou o limiar.

O calor da casa atingiu-a como uma muralha. Era opressivo, denso, com cheiro de veludo e verniz, deixando-a tonta. Cambaleou para o corredor, os olhos arregalados, contemplando o mármore do chão, a escadaria que se perdia nas sombras, o lustre que pingava cristais como lágrimas congeladas. Era um palácio. Era uma prisão. Era aterrador.

“Carlos? És tu? O que se passa?”

A voz que quebrou o silêncio era aguda, elegante e gelida. Clarissa Mendes entrou no hall com um olhar tão cortante como seda negra. Os diamantes no pescoço brilhavam. Parou abruptamente ao ver Leonor.

Os olhos de Clarissa não apenas olhavam—avaliavam. Catalogavam o vestido surrado, o rosto sujo, o embrulho de trapos. Olhou para Leonor como se fosse algo a ser raspado da sola de um sapato.

“Carlos”, disse com uma calma terrível. “O que é isto?”

Leonor encolheu-se, puxando Beatriz para perto. Baixou a cabeça instintivamente, como se lhe tivessem ensinado. *Não olhes nos olhos dos ricos. Sê pequena. Sê invisível.*

“Chama a Dona Oliveira”, Carlos disse à esposa, a voz ainda rouca. “Diz-lhe que prepare o quarto de hóspedes leste. E que tragam leite quente. E comida.”

*A sobrancelha perfeita de Clarissa ergueu-se.* “O quarto de hóspedes? Carlos, perdeste a cabeça? Se queres fazer caridade, a cozinha pode dar-lhe uma sanduíche. Na porta dos fundos.”

“Não é caridade, Clarissa”, disse Carlos, sem tirar os olhos de Leonor. “E não usa a porta dos fundos.”

Apontou para uma poltrona de veludo na sala de estar. “Leonor. Senta-te. Por favor.”

Leonor olhou para a cadeira—cor de creme, imaculada—e depois para o vestido sujo. Abanou a cabeça. “Não posso, senhor. Fico aqui.”

“Senta-te”, ordenou.

Tremendo, Leonor sentou-se na beirada do sofá, como se pronta a fugir. A bebé, Beatriz, mexeu-se, o rostinho franzido, prestes a chorar.

Carlos engoliu em seco, um gesto estranho para um homem tão bem vestFinalmente, Leonor olhou para Carlos e viu nele não apenas um homem poderoso, mas um tio que, depois de tantos anos, finalmente a reconhecera como família, e nesse instante sentiu que, apesar de tudo, havia encontrado o seu lugar no mundo.

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