Quarenta Motociclistas se Revezam para Segurar a Mão de Criança em Seus Últimos Meses5 min de lectura

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**Diário Pessoal: O Amor de Quarenta Motards**

Nunca pensei que um erro tão simples pudesse mudar tanto. Aquele hospital, o Coração de Jesus, em Lisboa, era um labirinto de corredores brancos e cheiros desinfetados. Procurava o quarto do meu irmão, mas acabei ouvindo choros vindos de um cantinho escuro. E então a vi: a Maria, sete anos, magrinha, careca, afundada em lençóis grandes demais para ela.

“Está perdido, senhor?” perguntou, com aquela voz fina que ainda ecoa na minha cabeça.

Eu, o João Grande, todo tatuado, com gotas desenhadas no rosto, não sabia o que dizer. “Talvez,” respondi, olhando para aquela figura pequena. “E tu?”

“Os meus pais disseram que já voltavam,” sussurrou. “Faz vinte e oito dias.”

As enfermeiras contaram-me a verdade depois. Os pais da Maria assinaram a custódia para o Estado e desapareceram. Não aguentaram ver a filha definhar, os tratamentos, as contas. A pequena tinha uns três meses de vida, talvez menos.

“Ela ainda pergunta por eles todos os dias,” a enfermeira-chefe, a Sofia, contou baixinho. “Acha que estão no trabalho, presos no trânsito, ou a trazer-lhe um pastel de nata.”

Naquela noite, voltei ao quarto 117. A Maria estava acordada, agarrada a um urso de peluche gasto.

“O teu irmão está melhor?” Perguntou-me, lembrando-se porque eu lá estava.

“Não, pequenina,” respondi.

“Eu também não,” disse com uma calma que cortava a alma. “Os médicos acham que não percebo, mas percebo. Estou a morrer.”

“Tens medo?” Perguntei.

“Não de morrer,” sussurrou. “De morrer sozinha.”

Naquela noite, chamei os meus irmãos do Clube dos Lobos de Aço. Quarenta almas duras, cicatrizadas pela vida, cada um com as suas histórias.

“Tem uma menina,” comecei, engasgado. “Sete anos. A morrer. Os pais abandonaram-na. Não tem ninguém.”

O Mão de Ferro, o presidente do clube, nem hesitou: “O que precisas?”

“Tempo. Só isso. Que alguém fique com ela. Que não acorde sozinha.”

“No dia seguinte, começámos.”

O pessoal do hospital nunca tinha visto nada igual. Homens e mulheres de couro, alguns com histórias pesadas, sentados ao lado da Maria, a ler-lhe contos, a pintar-lhe as unhas de preto porque ela queria ser “tão forte como eles.”

Criámos um horário. Turnos de duas horas, vinte e quatro por dia. A Maria nunca mais acordaria sozinha.

O Cão, um ex-fuzileiro com pesadelos constantes, tomava o turno das duas da manhã. Cantava-lhe canções de embalar em português que a avó lhe ensinara.

“Tens uma voz bonita para ser tão assustador,” ela riu uma vez.

“E tu és uma guerreira,” respondeu ele, deixando-a aos risos.

A Rosa, que perdeu a filha numa batalha judicial, trazia livros para colorir. Desenhavam mundos onde as meninas cresciam e tinham motas roxas com chamas prateadas.

Quando a Maria começou a enfraquecer, ficámos mais criativos. Trouxemos tablets para ela “andar” connosco nas estradas através de vídeos. Usávamos chapéus ridículos para a fazer rir. Aprendemos a trançar o pouco cabelo que lhe restava, mãos calejadas com delicadeza inesperada.

Os médicos desconfiaram no início. Quem éramos nós? Porque nos importávamos? Mas viram como a Maria mudou. Parou de chorar. Sorriu. Tinha motards preferidos, piadas internas, até usava termos das motas de forma errada só para nos fazer rir.

“Esta sopa do hospital é mesmo uma Harley,” dizia, o que não fazia sentido, mas nos partia a rir.

Um dia, olhou para mim com aqueles olhos grandes e perguntou: “Se pudesses ser o meu pai, serias?”

“Num instante, pequenina.”

“Mesmo sabendo que eu parto mais cedo?”

“Todos os caminhos são diferentes. Mas vamos fazer deste o melhor que já existiu.”

Celebrámos o Natal em outubro, sabendo que ela não chegaria a dezembro. Quarenta motas no estacionamento, rugindo enquanto ela sorria da janela.

Para o Halloween, vestimo-nos de ridículos. O Mão de Ferro, de fada princesa, com brilho na barba. A Maria riu até ficar sem ar.

Fizemos um clube só para ela: “As Rodas da Maria.” Um colete de couro minúsculo com os nossos patches.

“Sou a vossa chefe agora,” anunciou, orgulhosa.

E quarenta vozes responderam: “Sim, patroa.”

Em novembro, a Maria piorou. Os turnos deixaram de ser brincadeira para serem apenas presença. Segurávamos a sua mão. Sussurrávamos que ela nunca estaria sozinha.

Ela parou de perguntar pelos pais. “Tenho vocês,” disse, olhando para nós.

Quando chegou o dia, estávamos todos lá. Quarenta motards num quarto para duas pessoas. Ninguém a deixou sozinha.

Ela já não falava, mas os olhos reconheciam cada rosto. Eu segurava uma mão. A Rosa, a outra.

“Estamos todos aqui, pequenina,” murmurei.

Ela apertou a minha mão fracamente.

Contámos histórias. Das viagens que faríamos juntos. Da mota roxa que ela teria. Do quanto era amada.

“Tu mudaste-nos, Maria,” o Mão de Ferro disse, a voz rouca. “Quarenta almas duras derretidas por uma menina de sete anos.”

Às onze da noite, com os quarenta em volta, ela partiu. Suave, em paz.

Ficámos com ela até o funeral. Ninguém a deixou sozinha, nem na morte.

O funeral foi algo que Lisboa nunca tinha visto. Trezentas motas, clubes de todo o país, todos ali por uma menina que nunca conheceram, mas cuja história os tocou.

Os pais nunca apareceram. Mas nós carregámos o caixão pequeno. A Rosa vestiu-a com o colete das “Rodas da Maria.” Eu pus as minhas luvas deE hoje, anos depois, ainda visitamos o seu túmulo no Dia de Todos os Santos, levando-lhe flores e lembrando da pequena guerreira que nos ensinou que o amor mais forte não é o que se promete, mas o que se cumpre.

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