Quarenta motociclistas fizeram turnos para segurar a mão de uma menina à beira da morte durante três meses, para que ela nunca acordasse sozinha no hospice.
As suas últimas palavras, antes de o cancro lhe roubar a voz, foram: “Queria ter um pai como tu” para João Grande, um homem de 150 quilos, montado numa Harley, com lágrimas tatuadas no rosto, que entrou no quarto dela por engano à procura da casa de banho.
Aquele passo em falso mudou tudo – não só para a Leonor, que tinha sido abandonada no hospital pelos pais, incapazes de a ver morrer. Mas também para cada um daqueles motociclistas endurecidos, que passariam os próximos noventa e três dias a garantir que aquela menina soubesse o que era ser amada antes de partir.
João Grande estava a visitar o irmão, também ele em fase terminal, naquele primeiro dia, a percorrer os corredores estéreis do Hospício de Nossa Senhora da Graça, quando ouviu um choro vindo do quarto 117.
Não era o choro normal de uma criança doente, mas um soluçar profundo, desesperado, de alguém que tinha perdido toda a esperança.
“Está perdido, senhor?”, perguntou ela quando ele espreitou para dentro do quarto. A sua cabeça careca refletia a luz cruel do hospital.
“Talvez”, admitiu ele, olhando para aquela criaturinha perdida numa cama de adulto. “E tu?”
“Os meus pais disseram que já voltavam”, sussurrou ela. “Isso foi há vinte e oito dias.”
As enfermeiras contaram-lhe a verdade mais tarde. Os pais da Leonor tinham deixado a custódia com o Estado e desaparecido. Não aguentavam ver a deterioração, as contas do hospital, a realidade de assistir à filha a definhar. Ela tinha, talvez, três meses de vida.
“Ela pergunta por eles todos os dias”, disse a enfermeira-chefe, Lurdes, baixinho. “Acha que estão só no trabalho, ou a trazer comida, ou presos no trânsito.”
João Grande voltou ao quarto 117 naquela noite. A Leonor estava acordada, a olhar para o teto, agarrada a um ursinho de peluche.
“O seu irmão está melhor?”, perguntou ela, lembrando-se do motivo da sua visita.
“Não, querida. Não está.”
“Eu também não”, disse ela, com uma frieza surpreendente para os seus sete anos. “Os médicos acham que eu não percebo, mas eu percebo. Vou morrer.”
A forma como ela disse aquilo, tão calma, partiu algo dentro de João.
“Estás assustada?”, perguntou ele.
“Não de morrer”, respondeu ela. “De morrer sozinha.”
Naquela noite, João Grande ligou para o seu clube de motociclistas, os Lobos de Aço. Trinta irmãos e dez irmãs, todos marcados pela vida, todos com as suas próprias dores.
“Há uma menina”, começou ele, engasgando-se. “Sete anos. A morrer. Os pais abandonaram-na. Não tem ninguém.”
“O que precisas?”, perguntou o Zé Caveira, presidente do clube.
“Tempo. Só… tempo. Alguém para ficar com ela. Por turnos. Ela tem, talvez, três meses e tem medo de ficar sozinha.”
“Feito”, disse o Zé, sem hesitar. “Começamos amanhã.”
O que se seguiu foi algo que a equipa do hospice nunca tinha visto. Motociclistas de couro, alguns com cadastro, outros com passados violentos, sentados em silêncio ao lado da cama de uma criança terminal. Lia-lhe histórias, brincava com bonecas, pintava-lhe as unhas de preto porque ela queria “parecer forte como eles”.
Criaram um horário. Turnos de duas horas, vinte e quatro horas por dia. A Leonor nunca mais acordaria sozinha.
O Diabo, um ex-fuzileiro com stress pós-traumático tão grave que mal conseguia dormir, ficava com o turno das duas às quatro da manhã. Cantava-lhe canções de embalar que a avó lhe ensinara em criança.
“Tem uma voz bonita para alguém tão assustador”, disse-lhe a Leonor uma vez.
“Tu também és assustadora, minha pequena guerreira”, respondeu ele, fazendo-a rir.
A Rosa, que perdera a própria filha num litígio de custódia anos antes, trazia livros para colorir e passava horas a criar mundos para a Leonor, onde os pais nunca iam embora e as meninas cresciam para pilotar motas.
“De que cor vai ser a minha mota quando eu crescer?”, perguntou a Leonor um dia.
A Rosa teve de sair do quarto para chorar antes de responder: “Roxa com chamas prateadas. Sem dúvida.”
À medida que a Leonor enfraquecia, os motociclistas tornaram-se mais criativos. Trouxeram tablets para ela “andar” com eles virtualmente através de vídeos das suas viagens. Usaram chapéus engraçados para a fazer rir quando a dor apertava. Aprenderam a trançar o pouco cabelo que lhe restava, aqueles homens enormes de mãos calejadas sendo incrivelmente delicados.
A equipa do hospital desconfiou no início. Quem eram aquelas pessoas? Porque se importavam?
Mas viram a Leonor transformar-se. Parou de chorar pelos pais. Voltou a sorrir. Tinha motociclistas favoritos, piadas internas, um vocabulário inteiro de termos de motas que usava mal de propósito para os fazer rir.
“Esta comida de hospital é mesmo uma Harley”, dizia ela, querendo dizer que era má, o que não fazia sentido, mas os fazia rir sempre.
Um dia, já lá iam dois meses, a Leonor perguntou algo a João Grande que o assombrou.
“Se pudesses ser o meu pai, querias?”
“Num instante, minha princesa.”
“Mesmo eu estando estragada?”
“Não estás estragada. Só estás a seguir um caminho diferente das outras crianças.”
“Um caminho mais curto”, corrigiu ela, sábia além dos anos.
“Talvez. Mas nós vamos fazer dele o melhor caminho que alguma vez existiu.”
Os motociclistas não se limitaram a sentar-se com ela. Tornaram-se o seu mundo. Anteciparam o Natal porque ela poderia não chegar a dezembro. Quarenta motas no estacionamento, acelerando enquanto ela assistia da janela, demasiado fraca para sair.
Anteciparam também o Halloween. Todos vestidos de forma ridícula – o Zé Caveira foi uma princesa fada, com asas e tudo, a barba coberta de purpurina. A Leonor riu tanto que precisou de oxigénio extra.
Criaram um “clube de motociclistas” só para ela – “As Rodas da Leonor”. Fizeram-lhe um colete de couro em miniatura, com patches. Até um de presidente.
“Agora sou a chefe de todos vocês”, anunciou ela, vestindo-o por cima do roupão de hospital.
“Sim, senhora”, responderam os quarenta em uníssono.
À medida que novembro se aproximava, a Leonor piorou. Os turnos passaram de entretenimento para conforto. Em vez de brincar, seguravam-lhe a mão. Em vez de piadas, sussurravam promessas de que ela não ficaria sozinha.
Os pais nunca voltaram. Nem uma vez. Mas a Leonor parou de perguntar por eles.
“Tenho vocês”, disse ela uma noite, olhando para os motociclistas que enchiam o quarto. “Isso é melhor.”
A 15 de novembro, a Leonor piorou drasticamente. Os médicos disseram que eram horas, talvez um dia. Todo o clube apareceu. Quarenta motociclistas num quarto de hospice feito para duas pessoas. A equipa nem tentou impor restrições.
A Leonor estava consciente, mas já não falava. Os olhos perOs seus olhos percorreram cada rosto conhecido, enquanto as mãos dos motociclistas a envolviam em calor, até o seu último suspiro, tranquilo e rodeado de amor.





