**Parte 1: O Diabo de Terno**
**Capítulo 1: O Calor e o Silêncio**
Conhecem aquele calor que pesa no peito como um cobertor encharcado? Era assim naquele dia no Alentejo. O asfalto tremia, ondulando como um espelho quebrado. Nós, os *Santos de Ferro*, estávamos na estrada desde o amanhecer. Cansados, com fome e sede.
Parámos no *Tasca do Zé*, um restaurante à beira da estrada que cheirava a bacon queimado e café requentado. Era o tipo de sítio onde a empregada te chama “meu amor”, mas parece capaz de te deitar ao chão com uma panela se te atreveres a ser atrevido. Ocupámos duas mesas fundas no fundo, capacetes em cima da mesa, a rir alto, a praguejar à vontade. Nem ligávamos a quem nos observava.
Saí para fumar um cigarro enquanto os outros faziam o pedido. Encostei-me à minha mota, uma *Harley* personalizada que é o meu orgulho, e acendi. Foi então que o vi.
O miúdo.
Estava sentado no passeio, perto de um *SUV* preto, brilhante, um *Mercedes* impecável. Destoava completamente das nossas carrinhas enferrujadas e motas empoeiradas. O motor estava ligado, o ar-condicionado a funcionar, suponho. Mas o miúdo estava lá fora, no calor de 40 graus.
Estava a olhar para mim. Não como os miúdos normalmente olham, com admiração ou curiosidade pelas motas. Ele estava a analisar-me. Como se estivesse a calcular probabilidades.
Dei uma passa, soprei o fumo para o sol abrasador e acenei-lhe com a cabeça. “Bons ténis, rapaz,” grunhi, referindo-me aos *Air Jordans* novinhos em folha.
Ele não sorriu. Levantou-se. Olhou para a janela da tasca, depois para os vidros escurecidos do *SUV*. Depois, começou a caminhar na minha direção. Rápido.
Não parecia um miúdo perdido. Estava limpo. Demasiado limpo. A camisa pólo estava bem enfiada. Mas, à medida que se aproximava, vi que o suor na testa não era só do calor. Ele estava pálido. A tremer.
Parou bem à minha frente. Olhei para baixo. “Estás perdido, miúdo?”
Ele engoliu em seco. A garganta moveu-se. Estendeu a mão trémula e agarrou o couro do meu colete. Apertou com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
“Vocês… vocês são maus?” perguntou, a voz um sussurro, a falhar no meio.
Ri-me, atirando o cigarro para o chão. “Depende de quem pergunta. A minha mãe diz que sou um santo. A polícia acha que sou um problema. Porquê?”
Ele deu mais um passo, invadindo o meu espaço. Cheirava a perfume caro—demasiado maduro para um miúdo—e a medo. Medo puro.
“Preciso que façam algo mau,” sussurrou.
Franzi a testa, o sorriso a desaparecer. “Não te vendo cigarros, miúdo. Vai-te embora.”
“Não,” disse ele, os olhos a encherem-se de lágrimas instantaneamente. “Não isso. Preciso que me levem. Por favor. Ponham-me na mota. Levem-me embora. Roubem-me.”
**Capítulo 2: O Monstro no Estacionamento**
O mundo ficou em silêncio. O tique-taque do motor a arrefecer pareceu parar. O zumbido das cigarras desapareceu. Tudo o que ouvia era a respiração desesperada daquele miúdo de dez anos.
Agachei-me para ficar à sua altura. A brincadeira desapareceu da minha voz. “O que é que disseste?”
“Ele vai matar-me,” disse o miúdo, as palavras a saírem apressadas. “Não hoje. Talvez não amanhã. Mas em breve. Ele… gosta quando eu choro. E a minha mãe já não está aqui.”
O estômago revirou-se. Uma fúria fria, do tipo que me costuma meter na prisão, começou a ferver nas minhas entranhas. “Quem, miúdo? Quem te vai magoar?”
“Tomás!”
A voz ecoou pelo estacionamento. Era suave, autoritária, profunda. A voz de um locutor de rádio.
O miúdo, Tomás, estremeceu tão forte que quase caiu. Tentou esconder-se atrás de mim, pressionando o rosto contra o couro do meu colete.
Olhei para cima. Na entrada da tasca estava um homem. Alto, vestindo um fato de linho que custava mais do que a minha mota. Trazia um relógio de ouro que brilhava ao sol. Parecia um advogado, um político, ou um padre. Tinha um sorriso preso ao rosto, mas não chegava aos olhos. Os olhos eram mortos, de tubarão.
“Tomás,” disse o homem outra vez, caminhando na nossa direção com passos calmos. “Deixa o senhor em paz. Temos horário a cumprir.”
Ele não parecia ter medo de mim. A maior parte das pessoas vê o nosso símbolo—uma caveira a morder um pistão—e hesita. Este homem olhou para mim como se eu fosse o empregado.
“Ele está a incomodar-te, não está?” O homem riu, um som oco. “Desculpa. É um miúdo imaginativo. Está sempre a inventar histórias. Vamos, Tomás. Entra no carro.”
Tomás abanou a cabeça contra o meu estômago. “Não,” choramingou. “Por favor. Não deixes que ele me leve. Olha.”
Puxou a gola da camisa para baixo, só um pouco.
Vi.
Marcas de dedos. Roxas e amareladas, em volta do pescoço. Marcas de estrangulamento. Recentes.
E mais abaixo, na altura do ombro, a marca redonda e inconfundível de um charuto.
A visão ficou vermelha.
O homem estava a três metros agora, estendendo a mão para agarrar o braço de Tomás. “Eu disse para vires aqui, filho.”
Não pensei. Não calculei. Só reagi.
Ergui-me à minha altura máxima, mantendo Tomás protegido atrás da minha perna. Quando a mão do homem se aproximou, não a cumprimentei. Agarrei-lhe o pulso.
E apertei.
Senti os ossos a ranger. O sorriso perfeito do homem vacilou. “Com licença?” disse, a voz mais grave. “Larga-me. Esse é o meu filho.”
“Ele diz que não quer ir,” grunhi. A minha voz soava a brita num liquidificador.
“Ele é uma criança,” cuspiu o homem, a contorcer-se enquanto eu apertava mais. “Não sabe o que quer. E tu, meu caro, estás a agredir um juiz federal. Tens noção do furacão que estás a trazer sobre a tua cabeça?”
Um juiz. Fantástico.
“Não me importa se és o Papa,” disse, aproximando-me, a pairar sobre ele. “Foi tu que tocaste neste miúdo?”
A porta da tasca abriu-se atrás dele. Os meus irmãos, os *Santos de Ferro*, saíram a correr. Sentiam a tensão. Viram-me a segurar um homem pelo pulso. Viram o miúdo escondido atrás de mim.
O Rui, o meu braço-direito, aproximou-se, com uma sanduíche meio comida na mão. “Problema, Urso?”
“Sim,” disse, sem tirar os olhos do homem de fato. “Este tipo acha que leva o miúdo. Eu discordo.”
O homem de fato olhou para os outros seis motociclistas à sua volta. Não entrou em pânico. Limitou-seO homem de fato olhou para nós com um sorriso torto, mas os seus olhos passaram de arrogantes a assustados quando o Rui apertou o punho e todos avançamos em conjunto, formando uma muralha entre ele e o Tomás—e naquele momento, o juiz percebeu que não era mais a lei, apenas um homem que tinha acabado de perder.





