O Presente do Vizinho que Mudou Minha Vida — e o Terrível Preço que Ele Pagou6 min de lectura

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Capítulo 1: O Elevador Avariado

A chuva em Lisboa não lava a sujidade; apenas a torna mais escorregadia. Era isso que pensava ao encarar o aviso “Avariado” colado com fita adesiva nas portas de aço do elevador. A mensagem estava escrita a marcador no verso de um folheto de pizzaria. Era a terceira vez este mês.

Ali estava eu, agarrado às rodas da minha cadeira de rodas, sentindo o frio húmido do rés-do-chão penetrar no peso morto das minhas pernas. Chamo-me Tiago. Há três anos, era capataz numa equipa de construção civil, erguendo os prédios que desenham o horizonte da cidade. Media um metro e oitenta e cinco, pesava cem quilos de músculo e tinha uma mulher que ria como os sinos da igreja num domingo de manhã.

Depois, veio o bêbado na A1. Agora, a Marta está no cemitério, e eu estou nesta cadeira, a viver de subsídios de invalidez num prédio onde os canos do aquecimento batem como tiros a noite toda.

“Merda,” murmurei, batendo com a palma da mão no apoio braçal.

O som ecoou nos azulejos amarelados. Tinha duas opções: esperar pelo zelador, um tipo chamado Zé que cheirava a aguardente e desinteresse, ou arrastar-me três andares acima, de costas. O movimento implicava travar as rodas, saltar para o degrau e puxar a cadeira de cinquenta quilos atrás de mim. Era humilhante. Doloroso. A minha vida.

“Estás zangado outra vez.”

A voz veio das sombras debaixo da escada.

Virei a cadeira. Era o miúdo. O Lourenço.

Vivia no 3ºB, mesmo em frente ao meu apartamento. Não sabia muito sobre ele, só que nunca via os pais. Era uma criança independente, talvez com nove ou dez anos, magro como um palito. Usava sempre o mesmo casaco cinzento desportivo, com as mangas desgastadas sobre os nós dos dedos.

“Não estou zangado, Lourenço,” menti, a voz rouca. “Só cansado. O elevador avariou.”

Lourenço saiu da escuridão. Parecia pior do que o habitual. A pele tinha um tom translúcido, como pergaminho velho. Olheiras roxas e fundas marcavam o seu olhar. Estava a tremer, apesar das camadas de roupa.

“O Zé só o arranja na terça,” disse o miúdo, aproximando-se devagar, os ténis a arrastarem-se no chão. “Está a ver o jogo.”

“Terça,” grunhi. “Ótimo. Simplesmente ótimo.”

Olhei para as escadas. Pareciam o Evereste.

“Posso ajudar-te,” ofereceu Lourenço.

Quase ri. O miúdo parecia que um vento forte o deitaria abaixo. “Obrigado, pequeno, mas a menos que tenhas um jetpack nesse casaco, não podes.”

Lourenço não sorriu. Nunca sorria. Apenas me fitava com aqueles olhos pálidos e inquietantes. Eram cinzentos, mas não num tom plano—rodopiavam, como fumo preso em vidro.

“Não é para te carregar,” sussurrou. Meteu a mão no bolso. “Posso… curar-te.”

“Sabes consertar um elevador?”

“Não,” disse. “Mas posso curar-te a ti.”

O ar no rés-do-chão pareceu cair dez graus. O zumbido da máquina de snacks parou subitamente. Por um momento, só se ouvia a chuva a bater na porta de vidro.

“O que estás a dizer, miúdo?” perguntei, mais brusco do que pretendia.

Lourenço aproximou-se. Abriu a mão.

Na palma pequena e pálida estava uma moeda. Mas não era um euro ou um cêntimo. Era pesada, de prata escura, quase negra nas ranhuras. Não era perfeitamente redonda—parecia feita à mão. A superfície tinha símbolos que não reconhecia: espirais e linhas quebradas como relâmpagos.

“A minha avó deu-me isto antes de morrer,” sussurrou. “Chamava-lhe a Última Sorte. Dizia que todos nascem com um balde de sorte. A maioria derrama-o. Alguns… têm-no roubado.”

Olhou para as minhas pernas paralisadas.

“Roubaram-te a tua, Tiago.”

Senti um nó na garganta. Odiava pena, especialmente de uma criança. “Deixa disso, Lourenço.”

“Eu tenho um pouco guardado,” insistiu, ignorando-me. “Não sabia para quê. Pensei em usar para trazer a minha mãe, mas… ela não vai voltar.”

Respirou fundo, com dificuldade.

“Quero que fiques com ela.”

Capítulo 2: A Troca

Olhei para a moeda. Ela parecia absorver a luz fraca do rés-do-chão em vez de a refletir.

“Lourenço, para com isso,” disse. “Não posso ficar com o teu amuleto. Compra doces ou algo do género.”

“Isto não compra doces!” gritou, a voz a quebrar. Era a primeira vez que o ouvia levantar a voz. Parecia desesperado, lágrimas a formar-se naqueles olhos fumados. “Compra oportunidades. Compra tempo.”

Empurrou a mão para a frente, oferecendo-me a moeda.

“Já não preciso dela,” sussurrou. “Estou… demasiado cansado, Tiago. Mas tu… tu eras forte. Lembro-me.”

“Lembras-te?”

“Vi-te,” disse. “Antes do acidente. Quando te mudaste para cá. Carregaste um sofá sozinho pelas escadas. Parecias um gigante. Quero que o gigante regresse.”

Algo dentro de mim partiu-se. Talvez fosse o cansaço. Talvez a desesperança de encarar aquelas escadas. Ou talvez o olhar do miúdo—cheio de uma certeza absoluta e aterrorizante.

“Se eu aceitar isto,” falei, a voz rouca, “vais para casa e descansas? Pareces doente, miúdo.”

Acenou com a cabeça. “Vou. Prometo.”

“Está bem.” Estendi a mão. “Dá cá.”

Lourenço hesitou por uma fração de segundo. Os dedos tremiam. Olhou para a moeda uma última vez, com saudade e medo, e depois deixou-a cair na minha palma.

A reação foi instantânea.

Não estava apenas fria—queimava como gelo seco. Um choque elétrico, violento e azul, saltou do metal para a minha pele. Percorreu o braço, ignorou o ombro e acertou na minha coluna como um martelo.

“Credo!” gritei, quase a deixando cair.

Fechei o punho instintivamente. A dor desapareceu tão rápido como chegara, substituída por um calor suave que se instalou no peito.

“Está feito,” sussurrou Lourenço.

Olhei para ele. Estava a balançar-se. Parecia… mais pálido. Como se alguém tivesse diminuído o brilho de um ecrã. A pele estava cinzenta. Os lábios, quase azuis.

“Lourenço?” Estendi a mão.

Ele recuou. “Tenho de ir. Lembra-te… a balança tem de equilibrar-se.”

“Espera—”

Virou-se e fugiu. Ou melhor, arrastou-se. Movia-se como um velho, agarrado ao corrimão, subindo os degraus um a um, com esforço.

“Miúdo!” chamei.

Não olhou para trás. Ouvi a porta dele bater um minuto depois.

Fiquei ali sentado, no silêncio do rés-do-chão, a apertar a moeda estranha. “Maluco do miúdo,” murmurei. “EletricO sol brilhava no campo verde enquanto caminhávamos, eu, Lourenço e a Marta, livres finalmente da moeda e da escuridão que nos perseguira em vida.

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