O milionário relutante volta para casa onde a esposa agoniza, até que um pequeno menino de rua lhe limpa os sapatos

— Quer engraxar? — a voz soou como o ranger de um violino velho, surgindo do nada. Eu, curvado não só pelo peso do casaco, mas pelo fardo da própria vida, mal consegui me manter em pé.

— O quê? — revirei os olhos, cansado, sem olhar, como se espantasse um pardal da calçada de Lisboa.

— Os sapatos… Quer engraxar? Baratinho, senhor. Só um pouquinho.

Parei. Sob meus pés, o gelo de janeiro estalava — nem inverno, nem primavera, só lama, ar úmido e frio, tingido pela fumaça de fogueiras e pela melancolia alheia. Diante de mim, um menino — magro como um graveto, sujo, com olhos de carvão onde brilhavam faíscas de âmbar. O boné descaído, os sapatos grandes demais, como de um palhaço. Mãos pequenas, mas firmes, como garras de bicho. E de repente… não, não lembrei. Não havia o que lembrar: minha infância veio embrulhada em papel de rebuçados importados, enquanto ele, provavelmente, nunca provou chocolate.

— Não precisa — disse eu, desviando o olhar. No vidro da vitrine, um reflexo embaçado — e me perguntei: quem é esse? Não um rosto, uma máscara.

— Mas vai que sim? Por favor, tio! — fungou, puxando de dentro do casaco um pano engordurado.

— Tudo bem — suspirei, mais para me livrar dele do que por pena. — Mas rápido.

Ajoelhou-se à porta do café chique, sem hesitar, como se soubesse que eu não tinha pressa. Olhei suas mãos — unhas quebradas, sujeira entranhada na pele — e, pela primeira vez em anos, senti algo como vergonha.

— Obrigado, tio… — sussurrou, tremendo. — A mãe tá doente… Se juntar um troco, compro pão.

Engoli seco. Do lado de dentro do café, calor, luz, risadas, vapor dos pratos. Aquelas vozes cortavam como cacos. Eu ficara ali, preso ao chão.

— Ah, para… — ia dizer “para de mentir”, mas as palavras travaram. Quem era eu para julgar se era verdade ou só história por vinte euros?

— Pronto… — Ele sacudiu meus sapatos. — Tão bonitos, parecem novos! Só que… dá pra ver que o senhor tá triste.

— Por que diz isso? — forcei um sorriso.

— Dá pra ver — encolheu os ombros, guardando o pano. — Quem tem sapato sujo tá sempre com pressa. O senhor não. Não tem onde ir.

Não respondi. Fiquei ali, esfregando o ombro, me sentindo um objeto estranho num museu.

— Bom… — ele já se virava, mas parou: — Não esquece da sua mãe. Mesmo se… volta pra casa. Às vezes ‘tarde’ ainda não é tarde demais…

E sumiu na multidão como miragem. Eu fiquei, olhando os sapatos engraxados — e de repente eles pareceram alheios. Sim, cinco minutos com um miúdo de rua podem virar o mundo de cabeça para baixo. Mesmo que lá fora nada mude — só o frio e a escuridão.

Segui em frente. Devagar. O vento batia no rosto.

Não queria ir para casa. Mas não tinha para onde mais ir.

Caminhei, observando rostos que se perdiam no crepúsculo. Gente como sombras corria: uns gritavam ao telefone, outros se espremiam no autocarro, alguns sorriam para estranhos. E dentro de mim, só ela. A imagem da noite em que eu cruzava a porta do prédio, passava pela porteira, largava o casaco e ouvia — uma tosse fraca, depois uma voz quase inaudível:

— Chegaste?

No último ano, até isso era raro. Leonor quase não falava, só me olhava — sem reprovação, mas com uma pergunta silenciosa. Nunca me perdoou pelos anos de luxo: a casa no Algarve, os resorts fantasmas, os diamantes frios pelos quais paguei com a alma, não com dinheiro. Já não éramos aqueles sonhadores jovens que corriam descalços pelos bancos do jardim, acreditando que “para sempre” não era só palavra.

Pelo caminho, o olhar do menino me perseguiu. Ele me encarava de baixo — pedindo esmola? Ou tentando consolar? Por que crianças de rua veem nos adultos o que psicólogos bem pagos não enxergam?

Em casa, só silêncio. O ranger do assoalho soava como marcha fúnebre. O corredor parecia um palco vazio. Tudo ali respirava Leonor: flores secas nos vasos, livros em fila, cheiro de remédios e baunilha enjoativa. Antes, aqui cheirava a café. Ou era só memória?

Entrei no quarto. Leonor estava de lado, o rosto pálido como papel, lábios cerrados. Ao lado, um livro aberto, óculos, um copo de água turva e um termômetro que agora media não só febre, mas dias restantes. Ela não levantou a cabeça.

— Chegaste tarde outra vez…

A voz, baixa, mas afiada como vidro.

— Fiquei no escritório — menti. Para quê? Já não importava.

— Claro. Eu sempre em segundo. Ou terceiro, depois das reuniões… e do que mais tiveres.

Sorriu com mágoa infantil.

Sentei na beirada da cama. As palavras tinham acabado. Gastáramos todas. Primeiro, verdades; depois, recriminações; agora, silêncio pesado como pão mofado: ficava no ar, não importa o quanto se mastigasse.

— Ainda não te dou nada — engasguei. — Só… estou aqui.

Longa pausa.

— Sabes o que é pior? Nem por mim vais sofrer. Tudo calculado: esposa, hospital, contas. Voltarás para tua casinha, mastigando teus jantares sem alma…

— Cala-te — interrompi, brusco.

— Por quê? — um riso baixo, como folhas secas. — É verdade.

Apertei os punhos até os nós dos dedos empalidecerem. Queria fugir. Abrir a janela, respirar o ar cortante. Tudo ali era cemitério de coisas: quadros, luz fraca, relógios parados, marcando a agonia lenta.

E então lembrei do menino. Suas palavras:

*”Às vezes tarde ainda não é tarde demais.”*

E meu “tarde demais” chegara muito antes de percebermos.

— Perdão… — disse, baixo demais.

— Do quê? — virou a cabeça, olhos já apagados fixos no vazio. — Queres perdão? Ou queres ser perdoado?

Não sei. Honestamente, não sei.

A noite ficou cheia de rangidos e sussurros. Sentei na janela, olhando a luz morta do poste e, pela primeira vez em anos, senti-me sozinho não porque minha esposa morria, mas porque tudo parecia sem sentido.

Até a baunilha já não tinha cheiro.

A noite inteira me consumiu um pressentimento — como se estivesse à beira do abismo, onde ruas eram só escuridão. Na mente, sombras dos últimos anos, e entre elas, o menino, sua voz: “Não esquece da tua mãe”. E eu… até minha Leonor esquecera. Não apagada, mas adiada, como carta sem selo: depois… Até o fim.

A manhã começou em silêncio estranho. Acordei e percebi que já nem lembrava dos sons matinais: passos, tosse, a colher no café… Agora, nada. Leonor estava deE no fim, quando o outono trouxe folhas douradas e o riso do Francisco encheu a casa, eu finalmente entendi que a vida não se mede em dias, mas nos pequenos gestos que nos fazem sentir menos sós.

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