Na festa, ninguém dançou com ele… até a garçonete o convidar em sua língua.6 min de lectura

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O baile realizou-se num dos locais mais exclusivos de Lisboa, na varanda envidraçada do Hotel Dourado, de onde o céu alaranjado se fundia com as luzes da cidade. Era um casamento elegante, repleto de sorrisos forçados, fatos bem cortados e perfumes caros pairando no ar. A orquestra tocava um fado com precisão técnica, mas sem alma.

Todos se esforçavam para parecer felizes, todos exceto um. Num canto afastado da sala, sentado à mesa redonda, estava um homem que parecia ter sido colocado ali por engano. Eduardo Mendes, português, com um rosto impassível, um fato escuro sem uma única ruga, as mãos repousadas rígidas sobre as pernas.

Ele não falava com ninguém, não olhava para ninguém, apenas observava em silêncio, como se o mundo à sua volta fosse um filme mudo que já tivesse visto muitas vezes. À sua volta, os convidados evitavam até cruzar olhares. Dizem que é milionário, mas não parece. Ouvi dizer que tem fábricas ou que comprou metade do Algarve, mas ninguém se aproximava.

Ainda que o salão começasse a encher-se de gente que dançava desajeitadamente entre risos e copos, ele permanecia imóvel, como se não soubesse ou não quisesse fazer parte daquilo. Ele não entendia todas as palavras, mas entendia os gestos, as risadas reprimidas, os olhares desviados. O desconforto não precisa de tradução.

Entre bandejas e copos vazios, Catarina movia-se ágil pela sala, esquivando-se de conversas que não lhe pertenciam. Tinha 24 anos, olhos vigilantes e uma expressão que tentava manter-se neutra, embora os seus pensamentos raramente se calassem. Vestia o uniforme do staff: uma camisa branca, colete negro e um avental bem engomado.

Ninguém sabia que ela falava japonês. Ninguém sabia que tinha sido uma estudante excecional na universidade antes de desistir. Naquele casamento, era apenas a empregada de cabelo escuro no canto e estava habituada a ser invisível. Mas, naquela noite, a atenção dela foi capturada por Eduardo, não por curiosidade superficial, mas por algo mais profundo, mais humano.

Havia nele uma solidão que lhe parecia familiar, uma rigidez que não nascia do orgulho, mas do desenraizamento. Do seu canto, observou-o beber apenas um gole de água. Percebeu como ele lutava para manter a compostura, como se defendesse uma dignidade silenciosa que ninguém ali parecia reconhecer. Não havia arrogância no seu olhar, mas um cansaço subtil e antigo.

Quando os seus olhares se cruzaram, por um instante, Catarina baixou os olhos por reflexo, mas sentiu algo. Não era uma ligação romântica ou um ímpeto de atração, era algo diferente, como se, no meio da festa, ambos soubessem que não pertenciam verdadeiramente ali. Aquele contacto visual foi breve, tão breve que ninguém mais notou.

Mas, para os dois, sem que ainda o soubessem, aquela noite não seria como as outras. Catarina não costumava envolver-se com convidados; conhecia o seu lugar: passar despercebida, cumprir o turno e voltar para casa antes que o cansaço se transformasse em tristeza. Mas, naquela noite, enquanto os brindes se repetiam com risadas cada vez mais altas, o seu olhar voltava sempre para o canto onde Eduardo permanecia, sombrio.

Sozinho, as mãos firmes no colo, os olhos fixos no centro da sala, sem se mexer um centímetro. Algo dentro dela não a deixava ignorá-lo. Já tinha visto muita gente sozinha em festas, bêbados sem companhia, mulheres ignoradas, tios divorciados com olhares vazios. Mas isto era diferente. Não era a solidão de quem foi excluído.

Era a de alguém que, mesmo presente, nunca tinha sido verdadeiramente convidado. Catarina observou-o por longos minutos, entre bandejas de petiscos, conversas sobre negócios e comentários classistas lançados como dardos envoltos em educação. “Aquele homem parece mudo,” disse uma mulher de vestido vermelho, sorrindo maliciosamente. “Ou está à espera que lhe vão beijar os pés,” respondeu a amiga. “Ou só não quer misturar-se com portugueses,” acrescentou um homem, soltando uma risada tensa.

Catarina sentiu aquelas palavras apertarem-lhe o peito. Não por causa dele, exatamente, mas porque já tinha ouvido aquele tom tantas vezes dirigido a pessoas como ela, pessoas que trabalhavam servindo, limpando, cuidando, pessoas que não importavam.

Entretanto, Eduardo não reagia, mas havia uma tensão subtil nos ombros, como se entendesse mais do que aparentava, como se cada palavra o tocasse à distância, mas tocasse mesmo assim.

Passada meia hora, Catarina aproximou-se da mesa dele com uma bandeja de refrescos. Não precisava, outro empregado estava encarregue daquele setor, mas algo a levou para lá. Colocou um copo fresco à sua frente com movimentos suaves. Ia virar-se quando ouviu-o dizer, baixinho: “Obrigado.” O sotaque era desajeitado, mas compreensível. Português básico, com esforço.

Catarina olhou para ele surpresa e, sem pensar, respondeu em japonês. “Douita shimashite chini shinai de kudasai.” A cabeça de Eduardo ergueu-se bruscamente. Os olhos abriram-se ligeiramente e, pela primeira vez naquela noite, algo na sua expressão mudou. Uma racha no muro.

“Você fala japonês,” disse ele devagar, ainda na sua própria língua. Catarina acenou. “Estudei durante três anos. Gosto muito da vossa cultura.” Ele não respondeu imediatamente, mas inclinou a cabeça num pequeno aceno que vinha do coração. Foi um gesto breve, subtil, mas cheio de respeito.

Catarina sentiu que acabara de cruzar uma linha, invisível, não só com ele, mas com toda a festa. Sabia que, se alguém a visse a falar com um convidado, especialmente aquele, os olhares não tardariam. Mas, naquele momento, não lhe importava. “Deseja mais alguma coisa?” perguntou, agora em português.

Eduardo olhou para ela por um longo segundo e abanou a cabeça. “Só obrigado por falar.” Catarina acenou. Ela sorriu brevemente, um sorriso tímido, mais para si mesma do que para ele, e voltou a andar entre as mesas.

Ninguém tinha reparado em nada ainda, mas algo mudara. Depois daquele breve momento, Catarina continuou a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Mas o seu corpo não mentia; os passos eram mais leves, a respiração mais alerta.

Do outro lado da sala, Eduardo já não olhava para o vazio do salão. Agora, procurava. De vez em quando, discretamente, os olhos dele procuravam Catarina enquanto ela passava entre as mesE no final, quando a música parou e os olhares se cruzaram pela última vez, Catarina percebeu que, entre tantos convidados, apenas eles haviam dançado com a alma.

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