— Está tudo transferido. Não nos resta mais nada.
Rui atirou essas palavras com a mesma indiferença leve com que costumava jogar as chaves do carro sobre a cómoda.
Nem sequer olhou para mim enquanto desapertava a gravata cara—um presente meu no nosso último aniversário.
Fiquei paralisada com o prato na mão. Não de dor. Nem de choque. Mas por uma sensação estranha, quase física—como se um fio tenso se estivesse a esticar dentro do meu peito, prestes a vibrar e a soar a qualquer instante.
Dez anos. Dez longos anos à espera deste momento. Dez anos a tecer a minha teia, paciente como uma aranha, no coração do negócio dele, entrelaçando linhas de vingança nos relatórios financeiros secos.
— O que queres dizer com *tudo*, Rui? — A minha voz saiu assustadoramente calma, lisa como a superfície de um lago congelado. Coloquei o prato na mesa com cuidado. A porcelana tocou a madeira sem um ruído.
Ele virou-se, finalmente. Nos olhos, um triunfo mal disfarçado e irritação. Esperava lágrimas. Gritos. Humilhação. Não tencionava dar-lhe esse prazer.
— A casa, o negócio, as contas. Todos os ativos, Leonor — disse, com deleite. — Vou começar do zero. Uma vida nova.
— Com a Cristina?
O rosto dele petrificou-se por um instante. Não esperava que eu soubesse. Os homens são tão ingénuos. Pensam que uma mulher que tem na cabeça cada cêntimo das suas contas não reparará nas despesas mensais de *representação* equivalentes ao salário de um diretor.
— Isso não é da tua conta — respondeu bruscamente. — Deixo-te o carro. E o apartamento por uns meses, até arranjares algo. Não sou um monstro.
Sorriu. O sorriso de um predador saciado, certo de que a presa estava já na armadilha, só faltando o golpe final.
Aproximei-me devagar da mesa, puxei a cadeira e sentei-me. Apoiei as mãos na mesa, sem desviar o olhar.
— Então tudo o que construímos em quinze anos, simplesmente entregaste a outra mulher? Ofereceste-lhe?
— É negócio, Leonor, não entenderias! — A voz dele tremeu, o rosto manchou-se de vermelho. — É um investimento! No meu futuro! Na minha liberdade!
*Dele*. Não *nosso*. Tão facilmente me riscou da sua vida.
— Compreendo — acenei. — Afinal, sou contabilista, não é? Percebo de investimentos. Especialmente os de alto risco.
Olhei para ele, e dentro de mim não havia dor, nem raiva. Apenas um cálculo frio e preciso.
Ele não sabia que eu passara dez anos a preparar a resposta. Desde o dia em que vi no telemóvel dele: *”Estou à tua espera, meu gatinho.”* Não gritei nesse dia. Apenas criei um novo ficheiro no computador e chamei-lhe *Fundo de Reserva*.
— Transferiste a tua parte no capital social por doação? — perguntei, como se falasse do tempo.
— O que te importa? — explodiu. — Acabou! Faz as malas!
— Só curiosidade — sorri levemente. — Lembras-te da cláusula no contrato social que aprovámos em 2012? Quando expandimos a empresa?
Aquela sobre a transferência de quotas sem consentimento notariado de todos os sócios?
Rui congelou. O sorriso desfez-se como uma máscara. Não se lembrava. Claro que não. Nunca lia os documentos que eu lhe punha à frente. *”Leonor, está tudo em ordem? Assino, confio em ti.”*
Assinava, confiante na minha lealdade. E tinha razão—eu era leal. Leal à causa. Até à última vírgula.
— Que disparate! — riu-se, nervoso, mas o riso saiu rouco. — Que cláusula? Nunca existiu tal coisa.
— Existiu. Empresa “Horizonte Lda.” Tu e eu, sócios. Cinquenta por cinquenta. Artigo 7.4, alínea b. Qualquer ato de transferência—venda, doação—é nulo sem o meu consentimento por escrito e autenticado.
Falei baixo, pausadamente, como se explicasse a uma criança. Cada palavra cravou-se na consciência dele como um prego.
— Estás a mentir! — Pegou no telemóvel. — Vou ligar ao Vítor!
— Liga — encolhi os ombros. — Vítor Manuel. Ele foi quem autenticou o contrato. Guarda tudo. É meticuloso.
Rui ficou imóvel. Percebeu—eu não estava a brincar. Vítor estava connosco desde o início. Não era *homem dele*. Era *homem da lei*.
Ele discou. Ouvi fragmentos: *”Vítor, a Leonor diz… contrato de 2012… cláusula sobre transferência…”* Afastou-se para a janela, de costas para mim. Os ombros tensos. Vi-o apertar o telemóvel como se quisesse parti-lo. A conversa foi breve.
Quando se virou, o pânico estava-lhe estampado no rosto.
— Isto… é impossível! Vou a tribunal! Não tinhas parte! Tudo estava em meu nome!
— Vai — concordei. — Mas lembra-te: a tua doação não vale nada. Mas a tentativa de desviar ativos por parte de um administrador—isso é crime. Burla em grande escala.
Ele desabou na cadeira. O predador já não brincava. Diante de mim, um animal encurralado.
— O que queres? — sibilou. — Dinheiro? Quanto? Dou-te uma indemnização!
— Não quero o teu dinheiro, Rui. Quero o que é meu por direito. Os meus cinquenta por cento. E vou tê-los. E tu… ficas com o que trouxeste há quinze anos. Uma mala e dívidas.
— Eu criei esta empresa!
— Foste a sua cara — corrigi. — Mas quem a construiu fui eu. Cada contrato, cada fatura, cada pagamento de impostos. Enquanto tu *trabalhavas* com a Cristina no hotel.
Ele ergueu-se, derrubando a cadeira.
— Vais pagar por isto, Leonor! Vou destruir-te!
— Antes de me destruíres — disse suavemente —, liga à tua Cristina. Pergunta-lhe se recebeu a notificação da execução antecipada do crédito.
Ele estacou.
— Que crédito? Comprei-lhe a casa a pronto!
— Não — balancei a cabeça, sorrindo o meu sorriso mais profissional, mais contabilístico. — Não compraste. Convenceste-me de que era vantajoso para a empresa investir em imóveis. A “Horizonte” comprou a casa. Depois *vendeu-a* à tua amante. Ela assinou um contrato de crédito com a nossa própria empresa—pelo valor total. Com a casa como garantia.
Eu preparei os documentos, Rui. Foi ideia tua, lembras-te? Eu só a tornei realidade.
— E ontem, como única sócia legítima, iniciei o processo de cobrança.
A tua Cristina tem trinta dias para pagar. Se não o fizer, a casa volta para a empresa. Ou seja, para mim.
O rosto dele distorceu-se, como se uma máscara de cera derretesse em fúria e horror. Olhou para mim como para um fantasma—não para a Leonor submissa que anos a fio suportara em silêncio, mas para alguém estranho, calculista, perigoso.
Agarrou o telemóvel, sem desviar os olhos de mim, e marcou o número.
— Cristina? Sou eu. Escuta bem… O quê? Que notificação? Que estás para aí a dizer?
ObserveEle caiu de joelhos enquanto a voz dela ecoava pelo apartamento, e eu, sem pressa, fechei a pasta com um sorriso que não chegava aos olhos, pois a vitória nunca foi doce—apenas necessária.