Uma quietude pesada e espessa envolvia o apartamento, impregnado pelo aroma de incenso e lírios murchos. Leonor estava sentada à beira do sofá, curvada como se carregasse um fardo invisível. O vestido preto colava-se ao seu corpo, picando-a — um lembrete da razão principal daquele silêncio mortal: hoje ela enterrara a avó, Estefânia Maria — a última pessoa da sua família.
À sua frente, no cadeirão, estava esticado o marido, Ricardo. A presença dele parecia uma chacota — afinal, amanhã iriam assinar os papéis do divórcio. Ele não proferira uma palavra de consolo, apenas a observava em silêncio, mal disfarçando o fastio, como se esperasse que aquele espetáculo cansativo terminasse.
Leonor fitava um ponto no tapete desbotado e sentia as últimas faíscas de esperança por uma reconciliação se extinguirem lentamente, deixando para trás um vazio gélido.
— Bem, os meus pêsames pela tua perda — quebrou o silêncio Ricardo, com um tom sarcástico a tingir a voz. — Agora és uma mulher abastada. Herdeira! A tua avó deve ter deixado uma fortuna, não? Ah, esqueci-me — o maior tesouro: aquele “Zé do Pipo” velho e cheirando a mofo. Parabéns, verdadeiro luxo.
As palavras dele trespassaram-lhe o coração mais afiadas que uma lâmina. Na memória, surgiram brigas intermináveis, gritos, lágrimas. A avó, uma mulher de nome raro, Estefânia, detestara o genro desde o início. “É um aproveitador, Leonor,” dizia, olhando-a com severidade. “Oco como um tonel. Cuidado, ele esvazia-te e depois abandona.” Ricardo, por sua vez, chamava-lhe “bruxa velha” com um sorriso torto. Quantas vezes Leonor se vira no meio do fogo cruzado, tentando apaziguar, quantas lágrimas derramara, acreditando que tudo poderia ser consertado. Agora, percebia: a avó sempre soubera a verdade.
— Já que falamos do teu ‘futuro brilhante’ — continuou Ricardo, deleitando-se na crueldade. Ergueu-se, ajustando o casaco caro. — Amanhã, nem te dês ao trabalho de ir ao escritório. Já te despedi. O despacho foi assinado hoje de manhã. Por isso, querida, até o teu ‘Zé do Pipo’ vai parecer um luxo em breve. Vais acabar a revirar caixotes do lixo, e vais lembrar-te de mim com gratidão.
Era o fim. Não apenas do casamento — mas da vida que construíra à volta dele. A última esperança de que ele mostraria um resquício de humanidade morrera. No seu lugar, nascia no seu peito um ódio límpido e glacial.
Leonor ergueu os olhos vazios para ele, mas não disse nada. Para quê? Tudo já fora dito. Levantou-se em silêncio, foi ao quarto, pegou numa mala já preparada. Ignorou as gargalhadas e provocações dele. Com a chave do apartamento antigo, há muito esquecido, apertada na mão, saiu sem olhar para trás.
A rua recebeu-a com um vento gélido. Leonor parou sob a luz fraca de um candeeiro, pousando as malas pesadas no chão. À sua frente erguia-se um prédio de nove andares, cor de cimento — a casa da sua infância e adolescência, onde os pais viveram.
Anos se passaram desde a última vez que ali estivera. Depois do acidente de carro que levou a mãe e o pai, a avó vendera o próprio apartamento e mudara-se para ali, para criar a neta. Aquelas paredes guardavam demasiada dor, e, ao casar com Ricardo, Leonor evitara o lugar, encontrando-se com a avó em qualquer sítio, menos ali.
Agora, era o seu único refúgio. Lembrou-se de Estefânia Maria com amargura — a sua única âncora, mãe, pai, amiga. E nos últimos anos, ela própria visitara-a tão pouco, absorvida pelo trabalho na empresa do marido e pelas tentativas falhadas de salvar um casamento já desfeito. Uma culpa aguda trespassou-lhe o peito. As lágrimas, contidas o dia todo, caíram em torrentes. Estava ali, a tremer de soluços silenciosos, pequena e perdida na cidade enorme e indiferente.
— Tia, precisa de ajuda? — uma voz fina, levemente rouca, soou ao lado. Leonor sobressaltou-se. Diante dela estava um rapazinho de uns dez anos, com um casaco três números maior e ténis gastos. Apesar da sujidade no rosto, o olhar era lúcido, quase adulto. Acenou para as malas: — Pesadas, né?
Leonor enxugou as lágrimas apressadamente. A frontalidade e o pragmatismo dele deixaram-na desconcertada.
— Não, eu consigo… — começou, mas a voz falhou.
O miúdo fitou-a.
— Por que está a chorar? — perguntou, não com curiosidade infantil, mas com uma frieza quase adulta. — Gente feliz não fica na rua com malas a chorar.
Aquela simplicidade fez Leonor vê-lo de outra forma. Nos olhos dele não havia pena, nem troça — apenas compreensão.
— Chamo-me Filipe — disse ele.
— Leonor — sussurrou ela, sentindo a tensão a esmorecer. — Está bem, Filipe. Ajuda-me.
Acenou para uma das malas. O rapaz, bufando, pegou nela, e juntos, como aliados na desgraça, entraram no prédio escuro, cheirando a mofo e urina de gato.
A porta do apartamento rangeu, deixando-os entrar no silêncio empoeirado. Tudo estava coberto por lençóis brancos, as cortinas cerradas, apenas um fio de luz da rua iluminava os grãos de poeira a dançarem no ar. Cheirava a livros velhos e algo profundamente triste — o cheiro de uma casa abandonada. Filipe pousou a mala, olhou em volta como um perito em limpezas, e deu o veredicto:
— Isto vai dar trabalho… Uma semana, no mínimo, se formos os dois.
Leonor sorriu fraco. A praticidade dele trouxe um pouco de vida àquele ambiente opressivo. Olhou para ele: magro, pequeno, mas com uma expressão séria. Sabia que, após a ajuda, ele voltaria para a rua, para o frio e o perigo.
— Olha, Filipe — disse, firme. — Já é tarde. Fica aqui esta noite. Lá fora está frio.
O rapaz ergueu os olhos, surpreendido. Por um instante, a desconfiança pairou neles — mas depois, apenas acenou com a cabeça.
À noite, após uma ceia modesta — pão, queijo, comprados na mercearia mais próxima — sentaram-se na cozinha. Lavado e aquecido, Filipe parecia quase uma criança normal. Contara a sua história — sem lamúrias, sem lágrimas. Pais alcoólatras. Um incêndio no bairro de lata. Eles morreram. Ele sobreviveu. Fora levado para um orfanato, mas fugira.
— Não quero ir para a instituição — disse, olhando para a chávena vazia. — Dizem que de lá vais direto para a prisão. É como um bilhete para a miséria. Prefiro a rua — pelo menos lá, sou eu por mim.
— Isso não é verdade — Leonor respondeu baixinho. A dor dela recuara perante a história dele. — Nem o orfanato, nem a rua definem quem vais ser. O que importa és tu. Tudo depende de ti.
EleJuntos, como família, enfrentariam o futuro com a certeza de que o verdadeiro tesouro não estava escondido em geladeiras velhas, mas nos laços que construíram a partir do nada.