Num café cheio de motoqueiros em Lisboa, um garoto aproximou-se da nossa mesa e perguntou:
—Podem matar o meu padrasto por mim?
Todas as conversas pararam. Quinze veteranos de coletes de couro ficaram imóveis, a olhar para o menino de camisola de dinossauro que acabara de pedir um homicídio como se pedisse mais azeite para o pão.
A mãe dele estava na casa de banho, sem saber que o filho se aproximara da mesa mais temida da pastelaria, sem imaginar o que ele estava prestes a revelar — algo que mudaria as nossas vidas para sempre.
—Por favor — acrescentou o menino, com voz baixa mas firme. — Tenho cem euros.
Tirou notas amarrotadas do bolso e pousou-as em cima da mesa, entre chávenas de café e pastéis de nata meio comidos. As suas pequenas mãos tremiam, mas os olhos… aqueles olhos estavam sérios.
—O Grande Manuel — o nosso presidente, avô de quatro netos — inclinou-se até à altura dele.
—Como te chamas, campeão?
—João — sussurrou o menino, olhando nervosamente para a casa de banho. — A minha mãe já vem. Ajudam-me ou não?
—João, por que queres que magoemos o teu padrasto? — perguntou Manuel com suavidade.
O menino puxou o colarinho da camisola. Marcas roxas cobriam-lhe o pescoço.
—Ele disse que, se eu contar a alguém, magoa mais a minha mãe. Mas vocês são motoqueiros. São fortes. Podem pará-lo.
Foi então que reparámos no que não tínhamos visto antes: na forma como ele andava, inclinado para um lado. O pulso estava engessado. O hematoma amarelado no queixo, mal disfarçado com maquilhagem barata.
—E o teu pai? — perguntou o “Tosco”, o nosso segurança.
—Morreu. Acidente de carro quando eu tinha três anos — João respondeu, os olhos fixos na porta da casa de banho. — Por favor, a minha mãe já vem. Sim ou não?
Antes que alguém respondesse, uma mulher saiu da casa de banho. Bonita, nos seus trinta e poucos anos, mas com movimentos cautelosos, como quem esconde dor. Viu João à nossa mesa e o pânico invadiu-lhe o rosto.
—João! Desculpem, ele está a incomodar… — correu para nós, e todos vimos como ela estremeceu ao mover-se depressa.
—Não é incómodo nenhum, menina — disse Manuel, levantando-se devagar para não a assustar. — O seu filho é muito esperto.
Ela pegou na mão de João, e reparei como a maquilhagem escorria, revelando hematomas que combinavam com os do filho.
—Temos de ir. Vamos, meu amor.
—Na verdade — Manuel falou com calma —, porque não se senta connosco? Íamos pedir sobremesa. É por nossa conta.
Os olhos dela alargaram-se de medo.
—Não podemos…
—Insisto — a voz de Manuel deixou claro que não era um convite. — O João estava a dizer-me que gosta de dinossauros. O meu neto também.
Ela sentou-se com cautela, segurando o filho com força. O menino olhou para nós e para a mãe, esperança e medo misturados no seu rostinho.
—João — disse Manuel —, preciso que sejas muito corajoso agora. Mais do que quando nos pediste o que pediste. Consegues?
O menino anuiu.
—Alguém vos está a magoar, a ti e à tua mãe?
O suspiro dela foi resposta suficiente.
—Por favor — murmurou. — Não entendem. Ele vai matar-nos. Disse que…
—Menina, olhe para esta mesa — Manuel interrompeu suavemente. — Todos aqui serviram em combate. Já protegemos inocentes de agressores. É o que fazemos. Agora diga-me: alguém a está a magoar?
A sua compostura quebrou. Lágrimas começaram a escorrer.
—Chama-se Ricardo. O meu marido. É… polícia.
Isso explicava o seu terror. Um polícia agressor sabe manipular o sistema, fazer desaparecer queixas, fazer a vítima parecer louca.
—Há quanto tempo? — perguntou o Tosco.
—Dois anos. Pior desde que nos casámos. Já tentei partir, mas ele sempre nos encontra. Da última vez… — tocou inconscientemente nas costelas — o João passou uma semana no hospital. O Ricardo disse que caiu da bicicleta.
—Nem tenho bicicleta — murmurou João.
A fúria percorreu a mesa. Quinze veteranos que já tinham visto demasiada violência, mas violência contra uma criança… isso era diferente. Era imperdoável.
—Onde está o Ricardo agora? — perguntou Manuel.
—De serviço. Sai à meia-noite — respondeu, olhando para o telemóvel. — Temos de estar em casa até lá, senão…
—Não — interrompeu Manuel com firmeza. — Não têm de estar em lado nenhum. Onde está o seu carro?
—Lá fora. Um Renault azul.
Manuel fez sinal a três dos mais novos.
—Procurem rastreadores. Verifiquem também o telemóvel. — Estendeu a mão para ela.
—Não entendem — disse ela, desesperada. — Ele tem ligações. Outros polícias. Juízes. Uma vez queixei-me e acabei num hospital psiquiátrico. Disseram que eu era delirante.
—Como se chama? — perguntou Manuel.
—Inês.
—Inês, preciso que confie em nós. Consegue?
—Por que nos ajudariam? Nem nos conhecem.
João interveio:
—Porque são heróis, mãe. Como o pai. Heróis ajudam pessoas.
A expressão de Manuel suavizou-se.
—O teu pai era militar?
—Marinha — respondeu João, orgulhoso. — Morreu a servir Portugal.
A mesa ficou em silêncio. A viúva e o filho de um militar, maltratados por um polícia corrupto que se aproveitou da sua dor… isso era pessoal para todos os veteranos presentes.
—Inês — disse Manuel —, vou fazer umas chamadas. Temos recursos. Legais. Mas primeiro precisamos de as levar para um sítio seguro.
—Não há sítio seguro longe dele — respondeu, sem esperança.
—Menina — disse o “Tocha”, o mais novo do grupo, veterano do Iraque e advogado —, eu lido com casos de violência doméstica. Conheço juízes que não devem favores a ninguém. Mas precisamos de provas.
Inês riu-se com amargura.
—Ele é cuidadoso. Nunca bate onde se vê. Nunca deixa vestígios.
—As marcas no pulso dizem o contrário — notou o Tocha. — Como o pescoço do João.
—Ele vai dizer que mentimos. Que eu magoei o João para o incriminar.
—Difícil estrangular-se a si mesma — observou o Tosco.
O telemóvel de Manuel tocou. Atendeu, ouviu em silêncio, e o seu rosto endureceu.
—Encontraram três rastreadores no seu carro. Dois no telemóvel.
Inês empalideceu.
—Ele sabe onde estamos.
—Bom — disse Manuel, surpreendendo todos. — Deixá-lo vir.
—Vocês não percebem, ele é…





