Era um daqueles sonhos estranhos onde a lógica se dissolve como açúcar no café. “Finge que és minha esposa perante todos”, ordenou o milionário à jovem. Leonor Cardoso nunca imaginara que aceitar um emprego como camareira num hotel de cinco estrelas em Lisboa mudaria a sua vida para sempre. Aos 24 anos, deixara a sua terra natal, Braga, apenas seis meses antes, trazendo apenas uma mala e o sonho de estudar gestão.
O salário no Tivoli Avenida mal dava para pagar a renda do pequeno estúdio no Bairro Alto, mas era honesto e dava-lhe esperança de um futuro melhor. Naquela manhã de março, o ar estava fresco e o céu azul típico da capital anunciava um dia comum. Leonor organizava as toalhas no carrinho quando ouviu passos apressados no corredor do 10º andar. “Desculpe, menina”, chamou uma voz masculina em português com o sotaque refinado de quem frequenta os bairros elegantes da cidade.
Ela virou-se e deparou-se com um homem alto de cabelo castanho com algumas madeixas grisalhas nas têmporas e olhos escuros intensos. Vestia um fato azul-marinho impecável e trazia uma pasta de couro que parecia valer três meses do seu salário. “Sim, senhor? Em que posso ajudá-lo?”, respondeu Leonor, ajustando nervosamente o uniforme.
“Chamo-me Duarte Almeida. Preciso da tua ajuda para algo fora do comum.” Olhou em redor como a confirmar que estavam sozinhos. “Podemos falar em privado? É urgente.” Leonor hesitou. Duarte parecia ter uns 42 anos e havia algo no seu olhar que transmitia uma mistura de desespero e determinação. Não parecia perigoso, apenas desesperado. “Claro, mas não posso demorar muito. Tenho outros quartos para limpar.”
Duarte levou-a a uma pequena sala de estar no final do corredor, reservada para hóspedes especiais. Fechou a porta com cuidado e voltou-se para ela. “O que vou pedir-te pode soar estranho, mas preciso da tua ajuda.” Respirou fundo. “A minha família está a organizar um jantar esta noite. Será no Belcanto, no Chiado. É complicado de explicar, mas preciso que alguém finja ser minha esposa perante eles.”
Leonor abriu os olhos como pratos. “Como assim fingir, senhor Almeida? Nem sequer o conheço.” “Eu sei, eu sei. Soa a loucura.” Duarte passou a mão pelo cabelo. “A minha família tem expectativas muito específicas sobre a minha vida pessoal. Acham que sou casado há dois anos. Deixei que pensassem isso para evitar pressões constantes sobre casamento e filhos.”
“E por que me pede a mim? Não há agências para esse tipo de coisas?”, perguntou Leonor, genuinamente curiosa. “Preciso de alguém autêntico, que a minha família não conheça e que não faça parte dos seus círculos sociais.” Duarte tirou uma carteira do bolso. “Pago-te 5000 euros pela noite, apenas um jantar, umas horas. Só tens que sorrir, ser simpática e fingir que me conheces bem.”
5000 euros. Era mais do que o seu salário mensal. Com aquele dinheiro, Leonor poderia pagar as propinas atrasadas da universidade e ainda sobraria para as despesas do mês seguinte. “Por que haveria de confiar em si?”, perguntou, cruzando os braços. Duarte olhou-a nos olhos e, pela primeira vez, Leonor viu uma vulnerabilidade genuína no seu rosto. “Porque estou a ser honesto contigo desde o início. Poderia ter inventado uma história, mas escolhi dizer-te a verdade.”
Estendeu a mão. “Sou dono de uma empresa de tecnologia. Tenho 42 anos. Nunca casei e a minha família acha que sou um fracasso pessoal por isso.” Leonor olhou para a mão estendida, depois para o seu rosto. Havia algo de sincero na sua expressão que a comoveu. “Leonor Cardoso”, disse, apertando a sua mão. “24 anos, estudante de gestão e, ao que parece, tua nova esposa temporária.”
Duarte sorriu pela primeira vez e Leonor notou como isso transformava completamente o seu rosto. “Então, aceitas?” “Aceito. Mas com condições.” Leonor endireitou os ombros. “Nada de contacto físico para além de um aperto de mão ou um braço dado. Vens buscar-me às 19h e trazes-me de volta sã e salva. E se alguém fizer perguntas muito pessoais sobre o nosso casamento, tu mudas de assunto.”
“Perfeito. Venho buscar-te às 19h.” Duarte anotou o endereço que ela lhe deu num papel. “E Leonor, obrigado. Não sabes o alívio que me dás.” Quando ele saiu da sala, Leonor ficou sozinha a olhar para o cartão-de-visita que ele lhe deixara. “Duarte Almeida, CEO da TecnoLisboa”. Em baixo, o endereço de uma empresa na prestigiada Torre do Oriente.
Pela primeira vez em meses, perguntou a si mesma se não se estava a meter em algo muito maior do que imaginava. Às 19h em ponto, um Mercedes preto parou em frente ao modesto prédio onde Leonor vivia, na Rua da Rosa. Ela escolhera um vestido azul-marinho simples, emprestado pela vizinha, e uns sapatos baixos pretos que comprara no El Corte Inglés durante a pausa do almoço.
Duarte saiu do carro e abriu-lhe a porta, impecável num fato cinza-escuro. “Estás linda”, disse com sinceridade. E Leonor sentiu um calor subir-lhe ao rosto. “Obrigada. Espero que seja adequado para o restaurante.” “Está perfeito.” Duarte ajudou-a a entrar no carro. “Pelo caminho, conto-te sobre a minha família para que não sejas apanhada desprevenida.”
Enquanto atravessavam o trânsito de Lisboa, rumo ao Chiado, Duarte explicou: “O meu pai, Rui Almeida, tem 70 anos. É dono de várias empresas de construção e é, digamos, tradicional. Acha que um homem da minha idade já devia ter esposa e pelo menos dois filhos.” Fez uma pausa. “A minha mãe, Amélia, tem 68 anos. É mais compreensiva que o meu pai, mas igualmente preocupada com a minha vida pessoal.”
“E tens irmãos?”, perguntou Leonor, ajustando o cinto de segurança. “Sim, a minha irmã Inês tem 38 anos, é casada com o João e tem dois filhos pequenos. Sempre foi a filha modelo.” Havia um tom de amargura na sua voz. “E o meu irmão mais novo, Pedro, tem 35. É solteiro, mas está há cinco anos com a mesma namorada. Ainda assim, a pressão cai sempre sobre mim por ser o mais velho.”
Leonor observou o perfil de Duarte enquanto ele conduzia. Havia uma tensão nos seus ombros que não notara antes. “Por que nunca casaste de verdade?”, perguntou suavemente. Duarte ficou em silêncio por um momento, os olhos fixos no trânsito. “Tive uma relação séria aos 35 anos. Durou três anos. Ela queria casar, ter filhos. Eu achava que também queria isso. Mas quando chegou a hora de dar o próximo passo, apercebi-me de que estava com ela porque era o que todos esperavam de mim, não porque fosse o que realmente desejava.”
“E o que desejavas tu?” “Liberdade para construir a minha empresa sem pressões familiares. Tempo para descobrir quem era realmente fora das expectativas dos outros.” Olhou para ela rapidamente. “Soa egoísta.” “Soa honesto”, respondeu Leonor. “Melhor isso que um casamento infeliz.” Duarte sorriu. “Agora percebo porque te escolhi para isto.”
Chegaram ao Belcanto, um dos restaurantes mais conceituados da cidade. O local emanava sofisticação com a sua decoração minimalista e ambiente intimista. “Última oportunidade para desistires”,”E quando, seis meses depois, Leonor e Duarte se casaram na Sé de Braga, rodeados por quem realmente os amava, perceberam que a melhor mentira tinha sido o começo da mais bonita verdade.”





