A noite envolvia Lisboa numa névoa fresca e húmida, enquanto as sombras alongadas dos candeeiros dançavam sobre o pavimento vazio. Leonor, cirurgiã de profissão, e o marido, Diogo, regressavam a casa depois de um jantar com amigos. O silêncio era tão denso que um gemido fraco, vindo dos arbustos de jasmim junto ao caminho, pareceu gritar no vazio.
— Ouviste? — sussurrou Leonor, parando de repente.
— Ouvi — resmungou Diogo, sem abrandar o passo. — Deve ser bêbado. Anda, está a começar a chover.
Mas Leonor já se afastava do alcatrão, pisando a relva molhada. Anos de instinto médico não lhe permitiam ignorar aquilo.
— Tenho de ver — afirmou, firme. — Pode estar mal.
— Porque te metes sempre com tudo? — irritou-se ele, sem se virar. — Não estás de serviço. Chega de fazeres a heroína. Vamos, estou cansado.
Ela não respondeu, afastando já os ramos. No meio da vegetação, um homem jazia encolhido, as mãos pressionadas contra o lado. A luz da lua revelava uma mancha escura a espalhar-se pelo casaco. Leonor ajoelhou-se — os dedos ficaram pegajosos de sangue quente. A ferida era grave, provavelmente uma facada.
— Chama uma ambulância! — gritou ao marido, que permanecia na passagem com uma expressão de nojo.
Diogo aproximou-se com relutância, mas não havia compaixão nos seus olhos — só aborrecimento.
— Pronto, lá te meteste — rosnou. — Agora é papelada, polícia, noites sem dormir! Para quê?
Sem esperar resposta, virou-se e afastou-se, deixando-a sozinha no escuro, de joelhos ao lado de um moribundo. Naquele momento, um abismo insondável abriu-se entre eles.
— Acalme-se, não se esforce — disse Leonor, suave mas firme, inclinando-se sobre o homem. — Respire fundo. A ajuda já vem. Vai ficar bem.
A sua voz, calma e confiante, era a mesma que, anos a fio, devolvera esperança a centenas de pacientes. O homem parou de gemer, a respiração acalmou. Olhou para ela com gratidão silenciosa. Quando a sirene se ouviu ao longe, Leonor correu para a rua, sinalizando a ambulância. A equipa agiu com precisão. Colocaram-no na maca, prontos para partir.
— É conhecida? — perguntou-lhe o médico mais velho.
— Não, só o encontrei. Também sou médica — cirurgiã.
— Entendido, colega. Ele não tem documentos. Pode passar amanhã pelo Hospital de Santa Maria? Precisamos do seu depoimento para a polícia.
— Claro — assentiu Leonor.
A ambulância desapareceu na noite, deixando-a no silêncio. A casa ficava perto, mas ela caminhou devagar, como se adiasse o regresso. O que Diogo fizera queimava-lhe por dentro.
Lembrou-se de como se conheceram: ele fora seu paciente, partira a perna numa queda de bicicleta. Encantador, divertido, insistiu tanto que ela, cansada da solidão e dos turnos, cedeu. Lembrou-se também da primeira vez que vira a mãe dele — um olhar glacial, um comentário seco: *”O meu filho precisa de uma mulher para cuidar da casa, não de correr de bloco em bloco.”* Leonor sorrira, inocente. Agora, parecia-lhe ingénuo. Talvez a sogra tivesse razão.
Diogo esperava-a na cozinha. Acordado, o rosto distorcido pela raiva.
— Então, heroína? — provocou, mal ela entrou. — Podias nem ter voltado. Que esposa és? Jantar por fazer, camisas por passar, turnos a mais! Casei-me com quê? Para jantar sozinho?
Leonor sentou-se. Não tinha energia para discutir.
— Diogo, sou médica. É o meu trabalho. Havia um homem a sangrar.
— Não quero saber! — rugiu ele. — Quero uma mulher que esteja em casa, não a revirar arbustos! Não suporto o teu trabalho, as tuas noites, as tuas prioridades!
Cada palavra cortava como lâmina. Falava da sua vocação com tanto ódio que lhe faltou o ar.
— Estou farto de ti e do teu maldito juramento — cuspiu ele, levantando-se. Encenadamente, foi para o quarto e trancou a porta.
Naquela noite, Leonor dormiu no sofá da sala. De manhã, com a cabeça pesada e o peito apertado, fez algo pequeno mas significativo — não lhe preparou o pequeno-almoço. Não passou a ferro a camisa. Em vez disso, parou diante do espelho, maquilhou-se ligeiramente: delineou os olhos, tocou os lábios com brilho.
Quando entrou na sala dos médicos, as colegas reagiram com surpresa e carinho:
— Leonor, estás radiante hoje! O Diogo pediu-te em casamento outra vez? — gracejou a enfermeira Teresa.
— Pareces um milhão de euros! — exclamou o anestesista Rui.
Ela sorriu, constrangida. Esquecera como era ser notada, elogiada, bem-vinda.
Ao almoço, o chefe de cirurgia aproximou-se.
— Leonor, lembras-te do homem que encontraste? Trouxeram-no para cá — Santa Maria recusou, a UCI está cheia.
Ela assentiu. Ele baixou a voz:
— Mas afinal não é nenhum sem-abrigo. Acordou, fez uma chamada — e meia hora depois chegaram jipes com seguranças e advogados. É o Rodrigo, um empresário importante. Foi vítima de uma tentativa de homicídio — concorrentes. Salvaste um homem rico.
Leonor sorriu ligeiramente. Imaginou a ironia quando contasse a Diogo. Mas não teve oportunidade.
Ao chegar a casa, a fechadura estava trocada. Bateu. Diogo abriu, o olhar frio, distante.
Na entrada, as malas dela — atiradas às pressas.
— Pensei e decidi — disse ele, sem emoção. — Não és a mulher certa. Somos diferentes. Leva as tuas coisas e vai-te embora.
Leonor ficou paralisada. Uma rapariga surgiu do quarto — bonita, no roupão dela. Sob o tecido, um ventre redondo e falso.
— É a Sofia — apresentou ele. — Está grávida. Precisa de estabilidade, e eu de uma mulher em casa. Tu só sabes operar. Vai-te embora.
Sofia sorriu timidamente, acariciando a barriga postiça. Aquele teatro rasteiro foi a gota de água.
Leonor não disse nada. Nenhum grito, nenhuma lágrima. Apanhou as malas, virou-se e saiu. Dentro de si, apenas vazio.
Não tinha para onde ir. A família noutra cidade. As amizades, desfeitas pelo casamento e pelos turnos. O único lugar seguro era o hospital.
De táxi, dirigiu-se ao armazém de serviço, deixou as coisas e entrou na sala dos médicos. O Dr. Nuno, cirurgião sénior, olhou para ela — o rosto pálido, as malas — e percebeu.
— Fica, Leonor — disse baixinho. — O sofá está ali. Não és a primeira, nem serás a última. E, honestamente, há muito que não te via viva ao lado dele. Talvez isto seja um novo começo.
Ela acenou, grata. Sem perguntas, sem piedade — só compreensão. Era mais valiosa que mil palavras.
Deitou-se no sofá gasto, mas o sono não vinha. Levantou-seNaquela noite, enquanto caminhava pelos jardins do hospital, o vento trouxe-lhe um perfume de flor de laranjeira, e Leonor percebeu, pela primeira vez em anos, que a liberdade também tinha cheiro.