O ar do deserto era tão denso que se podia sentir a areia nos dentes. O sol do meio-dia batia no asfalto como um forno a 45 graus. Silêncio. O tipo errado de silêncio.
Era o silêncio de 13 atiradores de elite — todos homens, todos condecorados, todos cheios de arrogância — que haviam acabado de errar um tiro impossível. Treze disparos ecoaram. Treze colunas de poeira se ergueram, todas a metros do alvo a 4.000 metros.
O General Rodrigo Costa estava imóvel, a mandíbula tão tensa que parecia prestes a quebrar. Tirou os óculos escuros. “Mais algum atirador?”
Silêncio mortal. O único som era o bater de uma bandeira ao vento quente e irregular.
Então, uma voz cortou o calor. Feminina, calma, inabalável.
Era a minha.
“Posso tentar, senhor?”
Todas as cabeças se viraram. Daria para ouvir um alfinete cair na areia. Vi os olhares. Confusão. Irritação. Puro escárnio.
Saí da tenda de suprimentos. Só eu, a Capitã Inês Lopes. Uniforme simples, sem condecorações, sem fama. A mulher que chamavam de “Princesa do Inventário” ou “Menina do Café”. A que contava balas, mas supostamente nunca as disparava.
Se alguma vez te subestimaram, riram de ti ou te disseram para “ficar no teu lugar” só por não te enquadrares, esta história é para ti.
Porque a verdadeira força não precisa de um megafone. Precisa apenas de uma bala.
O meu dia não começou no campo de tiro. Começou às 4 da madrugada, no frio escuro do meu quarto. Sem despertador. Nunca preciso. Os fantasmas acordam-me.
Trinta e dois anos. Cabelo castanho preso num coque tão apertado que doía. Nada em mim grita “especial”. E essa é a armadura.
Fiz café preto numa chaleira amassada. Sem açúcar, sem leite. Só fogo e combustível. Enquanto o café pingava, fiz 50 flexões no chão frio, movimentos automáticos. Depois abdominais. Alongamentos que puxavam as cicatrizes antigas nas costas, que ninguém aqui viu e ninguém se atreveria a perguntar.
Debaixo da cama, puxei uma caixa de rifle desgastada. Dentro, reluzente sob uma camada de óleo, estava o meu M210. Retirado há três anos, segundo os registos. Não está em nenhum livro oficial. Não importa. É meu.
Todas as manhãs, desmonto-o. Limpo cada peça. O ferrolho, o gatilho, o percutor. Remonto-o em quatro minutos. Memória muscular nunca dorme. É um ritual. Uma oração. Uma forma de lembrar quem eu era. Quem ainda sou, sob esta camuflagem de logística e relatórios.
Bebi o café em pé, à janela, vendo o sol incendiar as montanhas. O rifle brilhava no meu catre. Meu castigo e minha salvação.
Às 6h, estava pronta, o M210 escondido, e caminhava para o escritório de logística. A minha missão: manter a cadeia de suprimentos a funcionar e as contagens de munição perfeitas. Nada glamoroso. Nada de combate. Apenas vital.
Um grupo de soldados jovens passou a correr. Cabelos cortados à máquina, piadas altas.
Um assobiou. “Olá, menina do café! Trouxeste bolinhos hoje?”
Outro riu-se. “Princesa do Inventário! Não perdes a conta dos clipes, pois não, Capitã?”
Continuei a andar. Botas a esmagar gravilha. Mas os meus olhos… os meus olhos estavam atentos.
Notei a leve falha no joelho esquerdo do terceiro homem. Estava a protegê-lo; provavelmente dores musculares, mas tentava disfarçar. O quarto homem poupava o ombro direito. A velocidade do vento, calculada pelas bandeiras a esvoaçar — 20 km/h, rajadas de 25, vindo do nordeste. A distância até ao campo de tiro, calculada pelo atraso no som dos disparos.
Vejo tudo. Calculo tudo. É o que faço.
No armazém de munições, o desrespeito tornou-se menos… casual. Um recruta derrubou uma caixa de balas misturadas. Caos. Balas de 5.56 e 7.62 espalhadas pelo chão. “Merda!” murmurou, ajoelhando-se, atrapalhado.
Ajoelhei-me ao seu lado. Sem palavras.
As minhas mãos moveram-se. Calibre, peso, fabricante. Separei-as em menos de 30 segundos. Cada bala no lugar certo. Não foi um truque. Foi física. Foi ordem.
O recruta ficou boquiaberto. “Como é que…?”
“Física,” disse, sem emoção. Levantei-me, sacudi o pó das mãos e saí.
O Sargento-Chefe Lopes, um atirador de elite com o peito cheio de medalhas, observava da entrada. Olhou para mim, os olhos cheios de suspeita. Ele viu. Não foi sorte. Foi estudo. Profundo estudo. Ele guardou a informação, mas ficou em silêncio.
Ele viu, mas não entendeu.
O desrespeito da manhã não terminara. Estava prestes a piorar.
Terminei a ronda no depósito de munições restritas. É onde ficam as balas de precisão. As caras. A minha assinatura é a última no registo antes de saírem para o campo.
Peguei no manifesto diário — o registo de todas as balas de 7.62mm e .338 Lapua. Estava desaparecido.
Um frio percorreu-me o estômago. Olhei em volta. E vi. Amassado. Enfiado num barril de panos sujos de óleo.
Peguei nele. O papel estava encharcado. Arruinado deliberadamente. Inutilizável. E o Major Pereira precisava dele em dez minutos.
Mantive o rosto neutro. Olhei para o fundo do depósito. Dois armadores — os mesmos que me chamavam “menina do café” — limpavam equipamento, evitando o meu olhar.
Não foi um erro. Não foi preguiça. Foi sabotagem. Uma tentativa infantil de me fazer falhar, de me fazer parecer incompetente. De colocar a “Princesa do Inventário” no seu lugar.
Não disse uma palavra. Não gritei. Não os denunciei.
Fui até à bancada mais próxima, peguei numa folha nova e cliquei na caneta. O som rápido e rítmico da caneta no papel foi o único no depósito.
Reescrevi todo o inventário. De memória.
7.62mm, 175-grãos, M118LR, Lote #FA-45B, 1.200 balas. .338 Lapua, 250-grãos, Mk 248 Mod 1, Lote #G-92A, 400 balas. Datas de validade. Números de lote. Peso total.
Tudo saiu perfeito no novo formulário, exacto até ao último dígito.
Quando os armadores passaram, fingindo sair, nem olhei para cima. Coloquei o manifesto impecável exactamente onde o outro estivera.
Cinco minutos antes do prazo.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Era o som da maldade deles a ruir sob o peso da minha competência. Foi mais satisfatório do que qualquer discussão.
Mais tarde, numa sala de reunião, o Major Pereira apresentava um briefing.
“O teste dos 4.000 metros,” anunciou. “Programa experimental de tiro a longa distância. Vamos seleccionar atiradores para um treino de elite.”
Nomes apareceram no ecrã. Os melhores atiradores. Vencedores deA bala perfurou o silêncio do deserto, não como um desafio, mas como uma lição: a verdadeira mestria não se anuncia, apenas se prova.





