Fiquei de pé, com os punhos cerrados e o coração batendo com força contra as costelas. O sol queimava sobre a quinta dos Vasconcelos, mas o que fervia dentro de mim não era calor: era raiva. Olhei para o pequeno casinhoto, o suor escorrendo pelo rosto da Matilde, o berço improvisado e aquele ventilador inútil que mal agitava o ar quente.
—Arruma as tuas coisas agora mesmo —repeti.
Ela hesitou, as mãos tremiam ao dobrar algumas camisolas. O olhar dela ia e vinha em direção à casa grande, a mansão branca dos Vasconcelos, como se temesse que, a qualquer momento, a Beatriz aparecesse no portal, com os seus olhos de gelo.
—Pai… se levares as minhas coisas, o Rodrigo vai virar-se contra mim. Ele… ele acha que isto é normal.
Parei. A raiva misturou-se com uma tristeza profunda. —Normal? Achas normal seres tratada como uma empregada indesejada?
Matilde baixou a cabeça. —Não quero perdê-lo. Amo-o, pai.
Olhei para ela. A minha filha, a mesma menina que eu ensinei a andar de bicicleta, que corria atrás de mim com uma gargalhada contagiante, agora encolhida num casebre como um pássaro ferido.
—Matilde —disse com voz firme—, eu também conheço as regras do amor. Mas há uma que não se quebra: o respeito. Sem respeito, não há amor.
Ela engoliu em seco, mas não respondeu.
Respirei fundo. A disciplina militar mantinha-me firme, mas, por dentro, estava à beira do desespero. Peguei no berço com um só movimento e levantei-o nos braços. —Isto vem connosco.
Matilde olhou para mim com os olhos arregalados. —Pai, por favor…
Nesse momento, a porta da casa abriu-se. A Beatriz apareceu com um vestido impecável, segurando uma taça de vinho. O sorriso falso dela trespassou-me como uma faca.
—O que se passa aqui, Augusto? —perguntou com um tom doce e venenoso.
—O que se passa —disse, controlado— é que acabei de encontrar a minha filha a viver em condições que nem um cão merece.
A Beatriz riu-se, como se tivesse ouvido uma piada infantil. —Oh, por favor. A Matilde exagera. Ela escolheu aquele sítio para as suas… artes.
—Com um bebé? Com quarenta graus de calor? —interrompi.
Ela ergueu o queixo. —A tradição dos Vasconcelos é clara. Ninguém estranho entra na casa sem o meu filho presente. A Matilde aceitou essa regra quando se casou.
—Ela não aceitou nada. Vocês obrigaram-na —rosnei.
A taça de vinho tremeu ligeiramente na mão dela, mas o rosto manteve-se impassível. —Augusto, isto é um assunto de família. Sugiro que não te intrometas.
Avancei um passo, ainda com o berço nos braços. —A Matilde é do meu sangue. Vocês declararam guerra. E eu nunca abandono o campo de batalha.
A Beatriz recuou meio passo. Vi, pela primeira vez, um lampejo de medo nos seus olhos.
Naquela noite, levei a Matilde e o bebé para a minha casa. Ela ficou em silêncio, abraçando o filho, sem tirar os olhos da janela como se esperasse que alguém viesse detê-los. Quando finalmente adormeceu no sofá, fiquei a olhar para ela. O rosto marcado por olheiras, mas nos lábios uma paz que não via há anos.
Sentei-me à mesa e comecei a escrever. A estratégia, como no exército, tinha de ser clara: primeiro resgatar, depois contra-atacar.
Ao amanhecer, fui ter com ela. —Matilde, quero que me contes tudo. Cada palavra que a Beatriz e a família usaram contra ti. Cada regra absurda.
Ela hesitou, mas depois, com lágrimas silenciosas, relatou três anos de humilhações: refeições servidas à parte, proibição de entrar na cozinhFinalmente, quando o sol se pôs sobre o Tejo, olhei para a Matilde sorrindo com o seu filho nos braços e soube que, apesar de todas as batalhas, a verdadeira vitória estava naquele momento de paz.





