**Diário**
O ar na sala dos médicos era denso, carregado do cheiro amargo e adocicado do café queimado e do cansaço acumulado. Parecia um caldo espesso, impregnado de noites sem dormir, alertas dos monitores e um desespero silencioso. **Ana Sofia**, uma mulher baixa e robusta como um tradiciona l fogão a lenha, com um rosto marcado pela dureza de anos de serviço, mexia lentamente o terceiro açúcar da noite na sua caneca desgastada. Os dedos dela, acostumados à precisão das agulhas e dos frascos de medicação, moviam-se automaticamente.
— Em dez anos nesta cirurgia, pensei já ter visto de tudo — murmurou para o ar, sem olhar para a jovem auxiliar **Bárbara**. — Mas um cirurgião de referência a trazer a filha para o trabalho? Não, isso é novidade.
Bárbara, cujos olhos ainda brilhavam com o entusiasmo da escola de enfermagem e o coração ainda não tinha sido engessado pelo cinismo, suspirou com compaixão. O seu avental parecia enorme nela, demasiado branco e desconfortável.
— E para onde é que ele a havia de levar, Ana Sofia? A **Mafalda**… — Bárbara hesitou, procurando as palavras certas. — …fez as malas e foi-se embora. Dizem que foi para aquele sócio de negócios. E a **Leonor** ficou sozinha. O **Dr. Tiago** está dividido entre a sala de operações e a filha.
— Dividido — fungou a enfermeira-chefe, mas não havia sarcasmo na sua voz, apenas uma sabedoria cansada, acumulada ao longo dos anos. — Talento divino. Mãos de ouro. Salva os que os outros já desistiram. E na vida… na vida é assim. Já são três semanas com a menina aqui. Ainda bem que a miúda é quieta como um rato, fica no cantinho dela a desenhar.
As duas ficaram em silêncio, encarando os reflexos turvos das suas chávenas. Os pensamentos de ambas giravam em torno da mesma pessoa — o cirurgião **Tiago Mendes**. O seu nome era respeitado nos corredores do hospital, envolto em lendas. Especialmente depois de, como um cavaleiro sem medo, ter pegado no caso mais desesperado — a paciente do quarto sete.
— E a milionária? Continua igual? — sussurrou Bárbara, instintivamente baixando a voz como se temesse perturbar o frágil equilíbrio entre a vida e a morte.
— Igual. Estável, mas grave. **Beatriz**… nome de rainha. E dizem que ela era mulher de sangue quente, cheia de força e graça. Depois daquele ataque… os nossos especialistas lavaram as mãos, mas o Dr. Tiago agarrou-se a ela com unhas e dentes. Trouxe-a de volta. Agora não a larga, vigia como um cão ao pé do dono. Ainda espera que ela acorde.
Bárbara espreitou discretamente para o corredor vazio naquela hora antes do amanhecer. Num cantinho improvisado pelos funcionários mais bondosos, sentava-se uma menina pequena. Duas tranças escuras saltavam-lhe dos lados da cabeça enquanto ela, franzindo a testa com concentração quase adulta, desenhava algo com marcadores coloridos, ignorando por completo o bulício hospitalar.
— A Leonor é um anjo em pessoa. Uma menina tão calma, não incomoda ninguém. Olhar para ela parte o coração.
— E o marido dessa Beatriz? — perguntou Ana Sofia, o tom de voz ganhando um toque de desconfiança. — O **Vítor**. Aparece, senta-se dez minutos com uma cara de pedra, como se estivesse numa reunião chata, e vai-se embora. Dizem que é mais novo, quase dez anos. Não sabemos mais nada. É esquisito. Frio.
Nesse momento, a porta rangeu levemente e apareceu na entrada uma figura alta, ligeiramente curvada, com uma bata branca outrora impecável, agora enrugada. Era o **Dr. Tiago**. A barba por fazer cobria-lhe as faces fundas, mas os olhos, mesmo exaustos, ardiam com uma luz intensa.
— Ana Sofia, Bárbara — a voz dele, normalmente suave e confiante, estava rouca de cansaço, mas firme. — Preparem-se. Parece que a nossa paciente do quarto sete está a mostrar… progresso. Vi um movimento nas pálpebras.
Sem esperar resposta, virou-se e saiu, os passos apagando-se rapidamente no corredor. As enfermeiras trocaram olhares. O ar ganhara um cheiro diferente — de esperança.
O cantinho da Leonor, escondido numa esquina acolhedora, era uma espécie de posto de observação. Dali, ela via quase todo o corredor sem ser notada. A menina acabara de terminar um vestido roxo para a sua princesa desenhada quando um homem se sentou pesadamente no banco em frente. Ela já o tinha visto antes — era o tal homem que visitava a senhora adormecida. Ele sacou do telemóvel e o seu rosto liso e bem cuidadoso contorceu-se numa expressão de raiva pura.
— Quanto tempo mais é preciso esperar?! — rosnou ao telefone, o sussurro dele sibilante como um veneno. — Não paguei para este… médico de meia-tigela fazer experiências nela! Ela devia ter… Enfim, resolve isso! Não vou ficar aqui eternamente!
Leonor estremeceu e afastou-se, como se tivesse levado um golpe. Não percebeu todas as palavras, mas o ódio gelado na voz dele era palpável. E ela sabia com absoluta certeza — aquele homem mau estava a falar mal do seu pai. Do seu pai, que não dormia há noites a fio para salvar aquela senhora. Um nó quente e desconfortável apertou-lhe a garganta. O homem levantou-se de um salto e desapareceu na esquina.
Mais tarde, quando as enfermeiras se dispersaram, Leonor aproximou-se em bicos dos pés da porta entreaberta do quarto sete, abraçando o seu caderno de desenhos. Tinha um desejo irresistível de ver a tal senhora por quem o homem mau dissera coisas horríveis. A mulher na cama estava pálida como os lençóis, rodeada de fios e tubos, parecendo uma boneca maltratada. Mas para Leonor, ela parecia apenas muito cansada e profundamente adormecida. Como a mãe… quando ainda era mãe.
— Leonor, não podes estar aqui, querida — sussurrou Bárbara, aparecendo por trás e levando-a de volta pelo braço com cuidado.
Enquanto isso, Beatriz debatia-se num vazio espesso e escuro. Não era um sonho, era o nada. Não sentia o corpo, não sabia onde estava. A sua consciência era um grão de areia perdido num oceano de escuridão. Um terror primitivo envolvia-a. Onde estava o Vítor? Onde estava o marido que jurara protegê-la de todos os males? Porque não estava ao seu lado, a segurar-lhe a mão, a chamá-la de volta?
Ela chamou-o mentalmente, com toda a sua força, mas só recebeu silêncio em resposta. Até que, através do breu, um som penetrou como um raio de luz. Primeiro indistinto, depois mais claro. Vozes. Uma feminina, cansada e serena. E… outra. Uma voz infantil, límpida como um sino de cristal. Uma menina. Se havia pessoas, especialmente crianças, ali, aquele lugar não era tão mau. Talvez ainda houvesse esperança.
Beatriz juntou as últimas forças, toda a sua fúria e vontade de viver, e fez um esforço sobre-humano para se aproximar daquele som. Uma dor aguda explodiu-lhe por todo o corpo. Luz cegante invadiu-lhe os olhos. Ela pestA vida, afinal, tinha-lhes reservado um final cheio de luz, como o sol da tarde que agora banhava a varanda onde riam juntos, finalmente completos.





