Chamei a Polícia para o Motociclista no Sacada do Vizinho — Até Ver o que Ele Dava6 min de lectura

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Estava quase a ligar para a PSP quando percebi o que o motociclista estava a fazer na varanda do meu vizinho. O meu dedo já estava a milímetros do botão de emergência quando olhei com mais atenção pela janela da cozinha e vi que aquele homem cheio de tatuagens, pendurado no terceiro andar, não estava a assaltar o apartamento.

Estava a segurar uma taça de comida para um cão esfomeado que estava preso naquela varanda há seis dias.

Seis dias. Eu tinha visto aquele cão definhar lentamente quase uma semana inteira. Um Pastor Alemão. Magro. Desesperado. A ladrar e a ganir a todas as horas. O apartamento pertencia a um gajo que tinha sido despejado, mas aparentemente decidiu deixar o cão lá para morrer à fome.

Já tinha ligado para o canil municipal quatro vezes. Disseram-me que não podiam entrar sem autorização do dono ou uma ordem judicial. Tinha ligado para a polícia.

Disseram que era um problema do canil. Tinha ligado para a administração do prédio. Disseram que estavam a “resolver a situação”, mas não podiam arrombar a porta sem aval legal.

Enquanto isso, um ser vivo estava a morrer a dez metros da minha janela. E eu sentia-me impotente. Todos nós nos sentíamos. Toda a gente no prédio ouvia aquele cão a chorar. Alguns queixavam-se do barulho. A maioria de nós só se sentia mal, mas não sabia o que fazer.

Até que esta manhã ouvi uma mota a chegar. Escape barulhento, daqueles que fazem os vidros tremer. Olhei para a rua e vi-o. Um tipo grande. Barba cerrada. Colete de couro cheio de patches. Braços cobertos de tatuagens. O tipo de pessoa que faz os outros atravessar a rua.

Ele estava a olhar para aquela varanda. O cão estava junto ao gradeamento, quase sem forças para se aguentar em pé, a ladrar fraco. O motociclista ficou ali parado uns dois minutos, só a observar. Depois entrou no prédio. Achei que talvez morasse lá. Vivem-se de tudo neste sítio.

Vinte minutos depois, ouvi vozes no corredor. Abri a porta um pouco. O motociclista estava a discutir com o administrador do prédio. “Aquele cão está a morrer”, disse ele. A voz era rouca, mas controlada. “Não estou a pedir permissão. Estou a dizer que vou salvar o animal.”

O administrador abanou a cabeça. “Senhor, não podemos permitir que os moradores arrombem portas. Se tentar fazer isso, vou ter que chamar a polícia.” O motociclista encarou-o. “Então chame. Mas eu vou buscar o cão.”

Ele afastou-se. O administrador saiu a correr, provavelmente para cumprir a ameaça. Voltei para o apartamento e observei pela janela. O motociclista saiu do prédio, foi à mota e tirou uma mochila. Depois fez algo que eu não esperava.

Começou a escalar. Não as escadas. A fachada do prédio mesmo. Havia uns relevos decorativos que davam para agarrar, se alguém fosse suficientemente forte e louco. E ele aparentemente era as duas coisas.

Subiu pelo primeiro andar. Pelo segundo. Vi-o a puxar o corpo para cima com os braços tatuados, as botas a encontrarem apoio em saliências estreitas. Não tinha qualquer equipamento de segurança. Nada de cordas ou arnês. Apenas um motociclista de meia-idade a escalar três andares em plena luz do dia porque um cão estava a morrer de fome.

Foi aí que quase liguei para a emergência. Porque, mesmo entendendo o que ele tentava fazer, aquilo parecia insano. Ele podia cair. Podia morrer. E eu seria testemunha de alguém a matar-se a tentar salvar um cão.

Mas algo me fez hesitar. Talvez fosse a forma como ele se movia. Cuidadoso. Determinado. Como se já tivesse feito coisas perigosas e soubesse os seus limites. Ou talvez fosse o facto de, em seis dias, eu só ter feito chamadas que não levaram a nada, enquanto este desconhecido estava a agir.

Ele chegou ao terceiro andar. Subiu até ao parapeito da varanda. O cão estava lá, a ladrar freneticamente. O motociclista esticou a mão devagar. “Calma, amigo. Calma. Vim ajudar.” A voz era suave. Nada a ver com o exterior assustador.

O cão cheirou-lhe a mão. Depois lambeu-a. Depois encostou o corpo esquelético ao gradeamento, tentando chegar ao primeiro humano que o tinha tentado salvar. Comecei a chorar a ver aquilo. Não consegui evitar.

O motociclista tentou abrir a porta da varanda. Trancada, claro. Tirou algo da mochila. Pensei que fosse um pé-de-cabra. Mas era uma taça e uma garrafa de água. E um saco de ração.

Ele não conseguia chegar ao cão. Mas podia alimentá-lo. Encheu a taça e segurou-a. O cão esticou o pescoço pelas grades e comeu. Desesperado. Frenético. O motociclista segurou aquela taça com uma mão enquanto se agarrava à varanda com a outra. Três andares no ar. Sem segurança nenhuma. A alimentar um cão abandonado.

“Devagar, amigo”, disse ele. “Se comeres muito depressa, vais ficar mal.” Mas o cão não podia devagar. Estava esfomeado. O motociclista deixou-o comer, depois deu-lhe água. O cão bebeu. Engoliu. Continuou até a garrafa estar vazia.

Foi então que ouvi as sirenes. O administrador tinha mesmo chamado a polícia. Dois carros da PSP chegaram. Os agentes saíram, olharam para cima e pediram reforços imediatamente. “SENHOR, FIQUE ONDE ESTÁ. VAMOS ENVIAR AJUDA.”

O motociclista olhou para baixo. “Estou a alimentar um cão que está à fome há uma semana enquanto vocês não fizeram nada.” A voz não estava zangada. Apenas factual. “Eu desço quando acabar.”

Um dos agentes era novo. Parecia recém-saído da academia. Já estava a pegar nas algemas. O outro agente era mais velho. Cinquentão. Fez sinal ao parceiro. “Espera.”

Aproximou-se do prédio e olhou para cima. “Senhor, como se chama?”

“Rui”, respondeu o motociclista. “Rui Almeida.”

“Rui, percebo o que está a tentar fazer. Mas está numa posição perigosa. Já chamámos o canil. Eles vêm a caminho com equipamento para entrar no apartamento. Precisamos que desça em segurança.”

Rui abanou a cabeça. “O canil já está ‘a caminho’ há seis dias. Este cão não aguenta mais seis horas.” Tirou mais ração. O Pastor Alemão comeu. Rui segurou a taça firme.

Uma pequena multidão juntava-se. Moradores do prédio. Pessoas da rua. Toda a gente a ver aquele motociclista a alimentar um cão faminto do terceiro andar.

Alguém na multidão gritou: “Deixem-no em paz! Ele está a ajudar!” Outra pessoa começou a filmar. Em minutos, todos tinham telemóveis na mão. Isto ia estar nas redes sociais em força, e a polícia sabia.

O rádio do agente mais velho crepitou. Ele ouviu e olhou para cima. “Rui, o canil chega em dez minutos. Eles trazem um corta-cadeados. Consegue aguentar mais dez minutos?”

Rui olhou para o cão. A taça estava vazia. Encheu-a outra vez. “EuO Rui desceu calmamente, com os olhos molhados e um sorriso cansado, enquanto o Pastor Alemão era finalmente levado para um novo lar, e eu, naquele momento, percebi que os verdadeiros heróis muitas vezes usam couro em vez de capas.

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