Era uma vez uma rapariga que nunca viu o mundo, mas sentia a sua crueldade em cada respiro. Catarina nasceu cega numa família que valorizava a beleza acima de tudo.
As suas duas irmãs, Inês e Margarida, eram admiradas pelos seus olhos cativantes e corpos esbeltos, enquanto Catarina era tratada como um fardo, um segredo vergonhoso escondido atrás de portas fechadas. A mãe morrera quando ela tinha apenas cinco anos, e, a partir daí, o pai tornara-se amargo e cruel, especialmente com ela. Nunca a chamava pelo nome—apelidava-a de “aquela coisa”. Não a queria à mesa durante as refeições nem perto de visitas. Acreditava que ela era uma maldição, e, quando Catarina fez 21 anos, tomou uma decisão que partiria o que restava do seu coração já despedaçado.
Uma manhã, o pai entrou no quarto pequeno onde Catarina estava sentada, tocando as páginas em braille de um livro velho, e colocou um pedaço de pano dobrado no seu colo.
—Vais casar amanhã — disse, sem emoção.
Catarina ficou petrificada. As palavras não faziam sentido. Casar? Com quem?
—É um mendigo da igreja — continuou ele. — Tu és cega, ele é pobre. Um bom par para ti.
Ela sentiu como se o sangue lhe tivesse abandonado o rosto. Queria gritar, mas nenhum som saiu. Não tinha escolha. O pai nunca lhe dera opções.
No dia seguinte, casou-se numa cerimónia apressada. Claro que nunca viu o rosto do noivo, e ninguém teve a coragem de lho descrever. O pai empurrou-a na direção do homem e ordenou que pegasse no braço dele. Ela obedeceu como um fantasma no próprio corpo. Todos riam à socapa, murmurando: “A cega e o mendigo”. Depois da cerimónia, o pai entregou-lhe um saco com roupas e empurrou-a para o marido.
—Agora é problema teu — disse, e virou-lhe as costas.
O mendigo, chamado Rui, guiou-a em silêncio pela estrada. Não disse nada durante muito tempo. Chegaram a uma cabana velha e decadente à beira da aldeia. Cheirava a terra molhada e fumo.
—Não é muito — disse Rui, com suavidade. — Mas estarás segura aqui.
Ela sentou-se no velho esteiro dentro da cabana, segurando as lágrimas. Aquela era a sua vida agora. Uma rapariga cega, casada com um mendigo, numa casa feita de barro e esperança.
Mas algo estranho aconteceu naquela primeira noite.
Rui preparou chá com mãos cuidadosas. Deu-lhe o próprio casaco e dormiu junto à porta, como um cão a guardar a sua rainha. Falava-lhe como se realmente se importasse—perguntou que histórias gostava, que sonhos tinha, quais comidas a faziam sorrir. Nunca ninguém lhe perguntara tais coisas.
Os dias viraram semanas. Rui levava-a ao rio todas as manhãs, descrevendo o sol, os pássaros, as árvores, com tanta poesia que Catarina começou a senti-los através das suas palavras. Cantava para ela enquanto ela lavava roupa e contava-lhe histórias de estrelas e terras distantes à noite. Ela riu pela primeira vez em anos. O coração começou a abrir-se. E, naquela cabana humilde, algo inesperado aconteceu: Catarina apaixonou-se.
Uma tarde, ao pegar na mão dele, perguntou:
—Sempre foste um mendigo?
Ele hesitou. Depois, respondeu, baixinho:
—Nem sempre fui assim.
Mas não disse mais nada. E Catarina não insistiu.
Até que, um dia…
Foi sozinha ao mercado comprar legumes. Rui dera-lhe indicações cuidadosas, e ela memorizara cada passo. Mas, a meio do caminho, alguém lhe agarrou o braço com violência.
—Rata cega! — cuspiu uma voz. Era a irmã, Inês. — Ainda estás viva? A brincar de esposa de mendigo?
Catarina sentiu as lágrimas, mas manteve-se firme.
—Sou feliz — disse.
Inês riu com crueldade.
—Nem sequer sabes como ele é. É lixo. Tal como tu.
Depois, sussurrou algo que lhe partiu o coração.
—Ele não é um mendigo, Catarina. Mentiu-te.
Ela voltou para casa atordoada. Esperou até o anoitecer e, quando Rui regressou, perguntou-lhe, desta vez com firmeza:
—Diz-me a verdade. Quem és, realmente?
Foi então que ele se ajoelhou, pegou-lhe nas mãos e disse:
—Não devias saber ainda. Mas não posso continuar a mentir-te.
O coração dele batia depressa.
Respirou fundo.
—Não sou um mendigo. Sou o filho do Duque.
O mundo de Catarina girou enquanto processava as palavras de Rui. “Sou o filho do Duque.” Recordou cada momento que partilharam, a sua bondade, a sua força silenciosa, as histórias que pareciam demasiado ricas para um simples mendigo. Agora entendia porquê. Nunca fora um mendigo. O pai casara-a não com um pobre, mas com nobreza disfarçada de trapos.
Ela retirou as mãos dele e perguntou, com a voz a tremer:
—Porquê? Porque me deixaste acreditar que eras um mendigo?
Rui ergueu-se, a voz calma mas carregada de emoção.
—Porque queria alguém que me visse—não a riqueza, não o título, apenas a mim. Alguém puro. Alguém cujo amor não fosse comprado nem forçado. Tu eras tudo o que alguma vez pedi, Catarina.
Ela sentou-se, as pernas demasiado fracas. O coração dela lutava entre a alegria e a dúvida. Porque não lhe dissera? Porque a deixara acreditar que era abandonada como lixo?
Rui ajoelhou-se novamente ao seu lado.
—Não quis magoar-te. Vim à aldeia disfarçado porque estava cansado de pretendentes que amavam o título, não o homem. Ouvi falar de uma rapariga cega rejeitada pelo pai. Observei-te durante semanas antes de propor o casamento, usando o disfarce de mendigo. Sabia que ele aceitaria só para se ver livre de ti.
As lágrimas escorriam pelo rosto de Catarina. A dor da rejeição misturava-se com a incredulidade—alguém iria tão longe só para encontrar um coração como o dela. Não sabia o que dizer, então apenas perguntou:
—E agora? O que acontece a seguir?
Rui pegou-lhe na mão com suavidade.
—Agora vens comigo, para o meu mundo, para o palácio.
O coração dela saltou.
—Mas sou cega. Como posso ser uma duquesa?
Ele sorriu.
—Já és, minha princesa.
Naquela noite, mal dormiu. Os pensamentos giravam em torno da crueldade do pai, do amor de Rui e do futuro aterrador que a esperava. De manhã, uma carruagem real chegou à cabana. Guardas vestidos de preto e ouro curvaram-se perante Rui e Catarina quando saíram. Ela segurou o braço dele com força enquanto a carruagem partiu em direção ao palácio.
Quando chegaram, a multidão já se reunira. Surpreenderam-se com o regresso do duque perdido, mas ainda mais por o verem com uma rapariga cega. A mãe de Rui, a Duquesa, avançou, os olhos apertados a estudar Catarina. Mas ela fez uma reverência respeitosa. Rui ficou ao seu lado e declarou:
E, enquanto a multidão murmurava, Catarina sorriu, pois sabia que, mesmo sem ver, era a pessoa mais feliz do mundo — e, afinal, o amor verdadeiro nunca precisou de olhos para ser encontrado.





