Um menino aproximou-se da nossa mesa cheia de motociclistas e perguntou:
—Podem matar o meu padrasto por mim?
Todas as conversas cessaram. Quinze veteranos com coletes de couro ficaram imóveis, a olhar para o rapazinho de camisola de dinossauro que acabara de nos pedir para cometer um assassinato como se estivesse a pedir mais molho para as suas batatas fritas.
A mãe dele estava na casa de banho, sem saber que o filho se aproximara da mesa mais temida do café Nicola na Avenida da Liberdade, sem ter noção do que ele estava prestes a revelar—algo que mudaria as nossas vidas para sempre.
—Por favor — acrescentou o menino, com uma voz baixa mas firme. — Tenho cem euros.
Tirou notas amarfanhadas do bolso e colocou-as em cima da mesa, entre chávenas de café e bifanas pela metade.
As suas mãozinhas tremiam, mas os olhos… aqueles olhos eram sérios.
—O Grande Miguel — o nosso presidente do clube e avô de quatro netos — inclinou-se até à altura dele.
— Como te chamas, campeão?
—Rui — sussurrou o menino, olhando nervosamente para a casa de banho. — A minha mãe já vem. Ajudam-me ou não?
—Rui, por que queres que façamos mal ao teu padrasto? — perguntou Miguel com suavidade.
O menino puxou o colarinho da camisola. Marcas roxas cobriam-lhe o pescoço.
—Ele disse que, se eu contar a alguém, vai magoar ainda mais a minha mãe. Mas vocês são motociclistas. Vocês são fortes. Podem pará-lo.
Foi então que notámos o que não tínhamos visto antes: a maneira como ela caminhava, inclinada para um lado.
O pulso dela estava numa tala. O hematoma amarelado no queixo, mal escondido com maquilhagem barata.
—E o teu pai verdadeiro? — perguntou o “Zé Ossos”, o nosso braço-direito.
—Morreu. Acidente de carro quando eu tinha três anos — disse Rui, os olhos fixos na porta da casa de banho. — Por favor, a minha mãe já vem. Sim ou não?
Antes que alguém pudesse responder, uma mulher saiu da casa de banho. Bonita, nos seus trinta e poucos anos, mas com movimentos hesitantes, como quem esconde dor.
Viu Rui à nossa mesa, e o pânico atravessou-lhe o rosto.
—Rui! Desculpem, ele está a incomodar… — Correu na nossa direção, e todos vimos como ela estremeceu de dor ao mover-se depressa.
—Não é incómodo nenhum, senhora — disse Miguel, levantando-se devagar para não a assustar. — O seu filho é muito esperto.
Ela agarrou a mão de Rui, e reparei como a maquilhagem se desfazia, revelando hematomas que combinavam com os do filho.
—Temos de ir. Vamos, meu amor.
—Na verdade — disse Miguel com voz tranquila —, porque não se senta connosco? Íamos pedir sobremesa. Por nossa conta.
Os olhos dela arregalaram-se de medo.
—Não podemos…
—Insisto — disse Miguel, e o tom deixava claro que não era apenas um convite. — O Rui estava a dizer-me que gosta de dinossauros. O meu neto também.
Ela sentou-se com cautela, segurando o filho com força. O menino olhava alternadamente para nós e para a mãe, esperança e medo misturados no seu rosto pequeno.
—Rui — disse Miguel —, preciso que sejas muito corajoso agora. Mais corajoso do que quando nos pediste o que nos pediste. Consegues?
O menino acenou com a cabeça.
—Alguém está a magoar-te e à tua mãe?
O suspiro dela foi resposta suficiente.
—Por favor — murmurou. — Não percebem. Ele vai matar-nos. Ele disse…
—Senhora, olhe para esta mesa — interrompeu Miguel em voz baixa. — Todos os homens aqui serviram em combate. Já protegemos inocentes de homens como ele. É o que fazemos. Agora diga-me, alguém a está a magoar?
A sua compostura desfez-se.
—Chama-se Vasco. O meu marido. Ele é… polícia.
Isso explicava o seu terror. Um polícia violento sabe manipular o sistema, fazer desaparecer queixas, fazer a vítima parecer louca.
—Há quanto tempo? — perguntou Zé Ossos.
—Dois anos. Pior desde que nos casámos. Já tentei fugir, mas ele sempre nos encontra. Da última vez… — tocou inconscientemente nas costelas — O Rui ficou uma semana no hospital. O Vasco disse que caiu da bicicleta.
—Nem tenho bicicleta — murmurou Rui.
Sentimos a fúria percorrer a mesa. Quinze veteranos que já tinham visto demasiada violência, mas violência contra uma criança… isso era diferente. Era imperdoável.
—Onde está o Vasco agora? — perguntou Miguel.
—De serviço. Sai à meia-noite — respondeu ela, olhando para o telefone. — Temos de estar em casa até lá, senão…
—Não — interrompeu Miguel com firmeza. — Não têm de estar em lado nenhum. Onde está o seu carro?
—Lá fora. Um Peugeot azul.
Miguel fez sinal a três dos homens mais jovens.
—Vejam se tem rastreadores. Vejam também o telemóvel dela. — Estendeu a mão para ela.
—Vocês não percebem — disse ela, desesperada. — Ele tem ligações. Outros polícias. Juízes. Uma vez queixei-me e acabei num hospital psiquiátrico. Disseram que eu era delirante.
—Como se chama? — perguntou Miguel.
—Ana.
—Ana, preciso que confie em nós. Consegue?
—Porque nos ajudariam? Nem nos conhecem.
Foi Rui quem respondeu:
—Porque são heróis, mãe. Como o pai. Heróis ajudam as pessoas.
A expressão de Miguel suavizou-se.
—O teu pai era militar?
—Marinha — disse Rui com orgulho. — Morreu a servir Portugal.
A mesa ficou em silêncio. A viúva e o filho de um marinheiro, maltratados por um polícia corrupto que se aproveitava da sua dor… para todos ali, aquilo era pessoal.
—Ana — disse Miguel —, vou fazer umas chamadas. Temos recursos. Legais. Mas primeiro precisamos de vos levar a um sítio seguro.
—Não há sítio seguro longe dele — respondeu ela, sem esperança.
—Senhora — disse Tocha, o mais novo do clube, veterano do Iraque e advogado —, eu trato de casos de violência doméstica. Conheço juízes que não devem favores a ninguém. Mas precisamos de provas.
Ana riu-se, amarga.
—Ele é cuidadoso. Nunca bate onde se vê. Nunca deixa marcas.
—Os hematomas no seu pulso dizem o contrário — notou Tocha. — Tal como o pescoço do Rui.
—Ele vai dizer que mentimos. Que eu magoei o Rui para o incriminar.
—Difícil estrangular-se a si mesma — observou Zé Ossos.
O telefone de Miguel tocou. Atendeu, ouviu em silêncio, e o seu rosto endureceu.
—Encontraram três rastreadores no seu carro. Dois no telemóvel.
Ana empalideceu.
—Ele sabe onde estamos.
—Ótimo — disse Miguel, surpreendendo todos. — Então que venha.
—Vocês não percebem, ele é…





