As portas automáticas abriram-se com um leve assobio. Um homem na casa dos cinquenta entrou, vestindo um casaco gasto e um boné puxado para baixo, escondendo parte do rosto.
Ninguém percebeu que ele era Eduardo Sousa — o fundador e CEO do Mercado Sousa, uma rede de supermercados que ele construiu do zero.
Parou perto da entrada, observando. Prateleiras desorganizadas. Um clima pesado e parado. Nenhum cumprimento. Os clientes andavam em silêncio, distantes.
Na caixa três, uma mulher passava as compras. Trinta e poucos anos, cabelo preso de qualquer jeito, olhos inchados de tanto chorar. Forçou um sorriso, mas as mãos tremiam. Eduardo espreitou de trás de uma prateleira. Ela enxugou o rosto — lágrimas no meio do turno.
Minutos depois, o gerente apareceu, gritando ordens. Algo estava muito errado.
O Mercado Sousa sempre representou respeito, justiça e dignidade. Eduardo acreditava que funcionários bem tratados criavam clientes fiéis. Essa filosofia levara a empresa a quase vinte lojas. Mas, ultimamente, esta loja gerava queixas sem fim.
Até que chegou uma carta escrita à mão — sem assinatura, mas desesperada. A sede ignorou. “Deve ser outra miúda mimada”, disseram. Mas Eduardo sentiu a verdade: não era uma reclamação, era um pedido de ajuda.
Agora, sob a luz fria dos fluorescentes, via com os próprios olhos. Aquela não era só uma loja em dificuldades. Estava destruída.
Uma voz cortou o silêncio. “Inês!” Um homem alto, de colete preto com “Supervisor” escrito, avançou para o caixa. Vermelho de raiva, bateu com uma prancheta no balcão.
“Chorando outra vez? Não avisei? Mais um escândalo e você está fora do horário.”
Inês endureceu. Enxugou o rosto e balançou a cabeça. “Sim, senhor. Vou me controlar.”
“Controlar?” ele zombou, aproximando-se. “Já faltou dois dias este mês. Não espere muitas horas na semana que vem.”
Ela ficou calada. Todos ficaram. Clientes desviaram o olhar. Colegas baixaram a cabeça.
Atrás do corredor dos cereais, Eduardo apertou os punhos. Aquilo não era liderança — era humilhação.
Naquela noite, seguiu Inês até ao estacionamento. Seu carro, um velho sedã enferrujado, estava longe da porta. Revolveu a carteira, virou-a de cabeça para baixo — só moedas caíram na mão. Tremendo, sentou-se no meio-fio, escondendo o rosto entre as mãos, soluçando.
Eduardo ficou parado. Planilhas, gráficos, relatórios nunca o prepararam para isso: uma funcionária sem dinheiro nem para a gasolina. Algo tinha de mudar.
Ao amanhecer, voltou — não como CEO, mas como “Zé”, um temporário com uniforme emprestado e crachá de papel.
Ninguém desconfiou. Foi colocado para repor estoque, junto com um rapaz magricela chamado Rui.
“Ei, novato”, Rui murmurou. “Fica quieto. Aqui ninguém fala se não for preciso.”
“Há muito tempo aqui?” perguntou Eduardo.
“Dois anos. Mas piorou. Aquele tipo, o Vasco? Corta turnos à vontade. Se tens filhos, esquece.”
“E a mulher do caixa ontem?”
“A Inês? Trabalha mais que todos. O filho tem asma grave. Esteve internado há duas semanas. Ela avisou, pediu para trocar turnos. Ninguém ajudou. Vasco castigou-a. Agora só tem dez horas por semana. Nem dá para o aluguel.”
Eduardo cerrou os punhos. Lembrou-se de assinar ordens de corte de custos, cego para as pessoas por trás dos números. Agora via o que “eficiência” realmente significava.
Naquela noite, acedeu ao sistema com uma conta antiga. Buscou: Inês Pereira. Horas reduzidas de 34… para 24… para 9. Anotação: “Pouco confiável. Não priorizar.”
No dia seguinte, bateu à porta do escritório.
“Sim?” rosnou Vasco.
“Ouvi falar da Inês”, disse Eduardo. “Mal está no horário.”
Vasco encolheu os ombros. “Sempre com desculpas. O filho isto, o filho aquilo. Isto é trabalho, não é caridade.”
“Ela deu aviso. O filho estava no hospital.”
“Isto é negócio, não um centro de apoio. Eu mantenho a loja nos trinques. A sede adora-me por isso.”
“Não”, Eduardo entrou, fechando a porta. “Não adora. E eu devia saber.”
Vasco franziu a testa. “O quê—?”
Eduardo tirou o boné e mostrou o crachá: Eduardo Sousa, Fundador & CEO.
Vasco empalideceu. “O senhor… é o dono?”
“Ouvi tudo. Vi tudo”, Eduardo respondeu gelado. “E vou recuperar o controlo.”
A notícia espalhou-se. Na sala de descanso, os funcionários juntaram-se enquanto Eduardo falava.
“Construí o Mercado Sousa para valorizar quem trabalha. Falhei com vocês. Isso acaba hoje.”
Virou-se para Inês. “Se quiseres, quero que sejas subgerente.”
Suspires encheram a sala. Inês recuou. “Eu? Mas tenho advertências!”
“Tu apareceste”, ele disse. “Aguentaste o que muitos não aguentariam. Já provaste mais do que suficiente.”
As lágrimas voltaram. “Sim. Aceito.”
Em seu novo escritório, abriu o horário. João: turnos duplos seguidos. Ana: cinco noites seguidas. Marta: nenhum, marcada como “não confiável” por causa dos filhos.
Inês apagou as notas. Reescreveu os turnos.
Manhãs para mães solteiras. Noites limitadas a três por semana. Aviso prévio para necessidades familiares.
No fim, escreveu: Se o teu horário não funciona, fala comigo. A minha porta está aberta.
A luz do sol entrou pelas persianas. Pela primeira vez, ela sorriu naquela mesa.
Na semana seguinte, o ambiente mudou. Rui ajudou um idoso a encontrar sopa. Ana ria enquanto arrumava maçãs. Inês percorreu os corredores com confiança — não sobrevivendo, mas liderando.
Uma semana depois, Eduardo voltou. Sem boné. Sem disfarce.
Ninguém olhou fixo. Ninguém suspeitou.
E isso estava perfeito.
Porque a verdadeira liderança não precisa de holofotes. Só precisa de manter a luz acesa para os outros.





