A criança descalça aproximou-se da minha mota à meia-noite, segurando um saco plástico cheio de moedas de um euro, e implorou que eu lhe comprasse leite em pó para o seu irmãozinho.
Não devia ter mais do que seis anos, ali parada, vestindo um pijama sujo da Branca de Neve, num posto de gasolina aberto 24 horas. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, limpando trilhos na poeira acumulada. Eu parara para abastecer depois de uma viagem de 600 quilómetros, exausto, desejando apenas chegar a casa. Mas aquela menina tremia enquanto estendia o saco de moedas na minha direção — o motociclista de aparência assustadora que ela escolhera abordar, em vez do casal bem-vestido abastecendo dois lugares adiante.
“Por favor, senhor,” sussurrou, olhando nervosamente para uma carrinha velha estacionada nas sombras. “O meu irmãozinho não come desde ontem. Eles não vendem a crianças, mas o senhor parece alguém que entenderia.”
Olhei para a carrinha, depois para os seus pés descalços no cimento frio, e finalmente para a loja, onde o empregado nos observava com desconfiança. Sabia que algo estava terrivelmente errado.
“Onde estão os teus pais?” perguntei, agachando-me ao seu nível, ignorando a dor no joelho.
Os seus olhos pousaram novamente na carrinha. “Dormem. Estão… cansados. Já há três dias.”
Três dias. O sangue gelou nas minhas veias. Sabia o que isso significava no mundo de onde eu viera, antes de me limpar há quinze anos.
“Como te chamas, querida?”
“Beatriz. Por favor, o leite. O Tomás não para de chorar e eu não sei mais o que fazer.”
Levantei-me devagar, decidido. “Beatriz, vou comprar o leite. Mas preciso que fiques aqui, ao lado da minha mota. Consegues fazer isso?”
Ela acenou freneticamente, empurrando o saco de moedas para as minhas mãos. Não o aceitei.
“Guarda o teu dinheiro. Eu trato disto.”
Dentro da loja, peguei leite em pó, biberões, água e toda a comida pronta que consegui carregar. O empregado, um rapaz que mal saíra da escola, observava nervoso.
“Aquela menina já veio aqui antes?” perguntei em voz baixa.
“Nos últimos três dias,” admitiu. “Sempre com pessoas diferentes, a pedir leite. Ontem tentou comprar sozinha, mas eu não podia… as regras dizem…”
“Negaste leite a uma criança?” A minha voz estava perigosamente calma.
“Liguei para a Segurança Social! Disseram que, sem morada, não podiam fazer nada—”
Bati o dinheiro no balcão e saí. Beatriz ainda estava junto à mota, mas agora balançava de cansaço.
“Quando foi a última vez que comeste?” perguntei.
“Terça-feira… talvez segunda. Dei as últimas bolachas ao Tomás.”
Era quinta à noite. Ou sexta, tecnicamente.
Entreguei-lhe o leite e os mantimentos. “Onde está o Tomás?”
Ela olhou para a carrinha, conflito no rosto. “Não posso dizer a estranhos.”
“Beatriz, sou o Lucas. Ando com os Lobos da Noite MC. Ajudamos crianças. É o que fazemos.” Mostrei-lhe o emblema no meu colete — um lobo com as palavras “Protegendo os Inocentes” por baixo. “Acho que tu e o Tomás precisam de ajuda.”
Ela começou a chorar, soluços que abalavam o seu corpo frágil. “Eles não acordam. Já tentei, mas não acordam e o Tomás tem tanta fome e eu não sei o que fazer.”
Os meus piores receios confirmados. Liguei ao presidente do clube, o Rui.
“Irmão, preciso de ti e do Doutor Carlos no posto da EN1. Agora. Traz a carrinha.”
“O que se passa—”
“Crianças em perigo. Possível overdose. Anda rápido.”
Depois liguei para o 112, denunciei a emergência e voltei para a Beatriz.
“Beatriz, preciso de ver o Tomás. Os meus amigos estão a vir — um deles é médico. Vamos ajudar.”
Ela levou-me até à carrinha. O cheiro atingiu-me primeiro — lixo humano, comida estragada, desespero. Atrás, sobre um monte de cobertores sujos, estava um bebé de uns seis meses, chorando fracamente. Muito fraco. E nos bancos da frente…
Dois adultos, inconscientes, mal respirando. Seringas no painel. Os lábios do homem estavam azuis.
Verifiquei os pulsos. Fracos, mas presentes. Depois, com cuidado, peguei no Tomás, a fralda a cair, imunda, o corpinho leve demais.
“Beatriz, quando foi a última vez que a tua tia e o namorado dela estiveram acordados?”
“Eles não são meus pais,” disse baixinho. “São a minha tia e o namorado dela. A minha mãe morreu no ano passado. Cancro. A tia Marta disse que ia cuidar de nós, mas depois conheceu o Hugo e começaram a usar aqueles remédios que os fazem dormir.”
Sirenes ao longe. A mota do Rui chegou ao estacionamento, seguida pelo Doutor Carlos na carrinha do clube.
O Doutor, antigo médico da Marinha, pegou no Tomás imediatamente, examinando-o. O Rui olhou para a cena e entendeu tudo.
“Quanto tempo já estão assim?” perguntou.
“Ela diz que há três dias.”
“Meu Deus.”
Os paramédicos chegaram, administraram naloxona, e o estacionamento transformou-se em caos. Polícia, ambulâncias, assistentes sociais. Beatriz encostou-se a mim, aterrorizada.
“Vão levar o Tomás,” soluçou. “Eu tentei tanto cuidar dele. Peço desculpa, peço tanta desculpa.”
Ajoelhei-me outra vez. “Beatriz, tu salvaste a vida dele. Tens nove anos e salvaste o teu irmãozinho. Ninguém está zangado contigo.”
Uma assistente social aproximou-se. “Precisamos de encaminhar as crianças—”
“Juntas,” disse firme. “Ficam juntas.”
“Isso nem sempre é possível—”
O Rui avançou, com o seu metro e noventa, colete cheio de emblemas de serviço militar e anos de estrada. “Senhora, com todo o respeito, essa menina foi a única mãe que aquele bebé conheceu nos últimos meses. Separá-los agora vai destruí-los os dois.”
Mais motas chegavam. A notícia espalhara-se pela nossa rede. Em uma hora, trinta Lobos da Noite estavam naquele estacionamento, todos testemunhando.
A assistente social parecia sobrecarregada. “Esta é uma situação complexa—”
“Não,” disse eu. “É simples. Estas crianças precisam de um lugar seguro, juntas. O nosso clube tem membros que são pais de acolhimento licenciados. O João e a Ana Silva. Ele, ex-fuzileiro. Ela, enfermeira pediátrica. Podem ficar com as crianças esta noite.”
O Doutor Carlos olhou para cima, ainda a cuidar do Tomás. “O bebé está desidratado, malnutrido, mas estável. Precisa de cuidados urgentes, mas vai sobreviver.”
Beatriz chorou ainda mais, mas agora de alívio.
A tia e o namorado já estavam conscientes, algemados, a ser levados em ambulâncias separadas. A tia viu a Beatriz e gritou.
“Beatriz! Não deixes que te levem! Peço desculpa, minha querida, peço tanta desculpa!”Beatriz escondeu o rosto no meu colete, e enquanto a segurava, soube que, por vezes, os maiores heróis não usam capas—usam capacetes e corações grandes o suficiente para salvar duas crianças numa noite fria.





