Centenas de motociclistas apareceram no funeral de um menino que ninguém queria enterrar porque o pai estava preso por assassinato.
O diretor da funerária tinha nos ligado depois de ficar sozinho na capela por duas horas, esperando que alguém—qualquer um—viesse dizer adeus ao pequeno João Almeida.
O menino morrera de leucemia depois de lutar por três anos, com apenas a avó como visitante, e ela tivera um ataque cardíaco um dia antes do funeral.
Os serviços sociais disseram que cumpriram seu dever, a família de acolhimento alegou não ser responsabilidade deles, e a igreja recusou-se a associar-se ao filho de um assassino.
Assim, aquele menino inocente, que passara seus últimos meses perguntando se o pai ainda o amava, seria enterrado sozinho num cemitério público, com apenas um número na lápide.
Foi então que Miguelão, presidente dos Cavaleiros do Asfalto, deu a ordem: “Nenhuma criança vai para a cova sozinha”, disse. “Não importa de quem seja filho.”
O que nenhum de nós sabia era que o pai de João, trancado numa cela de segurança máxima, acabara de receber a notícia da morte do filho e planejava tirar a própria vida naquela noite.
Os guardas o vigiavam para evitar o suicídio, mas todos nós sabíamos como isso geralmente terminava. O que aconteceu a seguir não só deu ao menino morto a despedida que merecia, como também salvou um homem que achava não ter mais nada pelo que viver.
Eu estava tomando meu café da manhã na sede do clube quando o telefone tocou. Fernando Pereira, o diretor da Funerária Paz Eterna, parecia ter chorado.
“Duarte, preciso de ajuda”, ele disse. “Estou numa situação aqui que não consigo resolver sozinho.”
Fernando enterrara minha esposa cinco anos antes, tratando-a com dignidade quando o câncer a reduziu a 40 quilos. Eu lhe devia.
“O que houve?”
“Há um menino aqui. Dez anos. Morreu ontem no Hospital Central. Ninguém veio. Ninguém virá.”
“Menino de acolhimento?”
“Pior. O pai é Marco Almeida.”
Eu conhecia esse nome. Todo mundo conhecia. Marco Almeida matara três pessoas num negócio de drogas que deu errado quatro anos atrás. Prisão perpétua. A notícia estivera em todo lugar.
“O menino lutava contra a leucemia há três anos”, continuou Fernando. “A avó era tudo o que ele tinha, e ela sofreu um ataque cardíaco ontem. Está na UTI, pode não resistir. O Estado diz para enterrá-lo. A família de acolhimento lavou as mãos. Até minha equipe se recusa. Dizem que é má sorte enterrar o filho de um assassino.”
“O que você precisa?”
“Carregadores. Alguém para… testemunhar. Ele é só uma criança, Duarte. Não escolheu o pai.”
Levantei-me, decidido. “Me dê duas horas.”
“Duarte, só preciso de umas quatro pessoas—”
“Você terá mais que quatro.”
Desliguei e toquei a buzina na sede do clube. Em minutos, trinta e sete Cavaleiros do Asfalto estavam na sala principal.
“Irmãos”, eu disse. “Há um menino de dez anos prestes a ser enterrado sozinho porque o pai está preso. Morreu de câncer. Ninguém o reclama. Ninguém o lamentará.”
A sala ficou em silêncio.
“Eu vou ao funeral dele”, continuei. “Não peço que ninguém venha. Isso não é negócio do clube. Mas se acreditam que nenhuma criança deve ir para a cova sozinha, encontrem-me na Funerária Paz Eterna em noventa minutos.”
Velho Urso falou primeiro. “Meu neto tem dez anos.”
“O meu também”, disse Martelo.
“Meu filho teria dez”, murmurou Cachaça. “Se o motorista bêbado não tivesse…”
Não precisou terminar.
Miguelão levantou-se. “Chamem os outros clubes. Todos os clubes. Isso não é sobre território ou cores. É sobre um menino.”
As ligações foram feitas. Águias da Estrada. Cavaleiros de Ferro. Discípulos do Diabo. Clubes que não se falavam há anos. Clubes com rixas sangrentas. Mas quando ouviram sobre João Almeida, todos disseram a mesma coisa: “Estaremos lá.”
Fui à funerária primeiro para falar com Fernando. Ele estava do lado de fora da capela, parecendo perdido.
“Duarte, eu não quis—”
O ronco cortou sua fala. Primeiro vieram os Cavaleiros do Asfalto, quarenta e três motos. Depois as Águias, cinquenta. Os Cavaleiros de Ferro trouxeram trinta e cinco. Os Discípulos, vinte e oito.
E continuaram chegando. Clubes de veteranos. Motociclistas cristãos. Guerreiros de fim de semana que souberam pelas redes sociais. Às 14h, o estacionamento da Funerária Paz Eterna e todas as ruas num raio de três quarteirões estavam tomadas por motocicletas.
Fernando arregalou os olhos. “Devem ser trezentas motos.”
“Trezentas e doze”, corrigiu Miguelão, aproximando-se. “Contamos.”
Fernando nos levou para dentro da capela, onde um pequeno caixão branco estava sozinho, com um único buquê de flores de supermercado ao lado.
“Só isso?”, perguntou Cobra, a voz rouca.
“O hospital mandou as flores”, admitiu Fernando. “Procedimento padrão.”
“Procedimento padrão é uma merda”, alguém resmungou.
Então a capela começou a encher. Homens rudes, muitos com lágrimas nos olhos, passando diante daquele caixãozinho. Alguém trouxe um urso de pelúcia. Outro, uma mini moto. Logo, o caixão estava cercado de oferendas—brinquedos, flores, até um colete de couro com o dizer “Motociclista Honorário” costurado.
Mas foi Caveira, um veterano das Águias, quem partiu o coração de todos. Aproximou-se do caixão, colocou uma foto contra ele e disse: “Este era meu filho, Jeremias. Tinha a mesma idade quando a leucemia o levou. Não pude salvá-lo, João. Mas você não está sozinho agora. Jeremias vai te mostrar o caminho lá em cima.”
Um a um, os motociclistas levantaram-se para falar. Não sobre João—nenhum de nós o conhecera. Mas sobre crianças perdidas, inocência destruída, sobre como nenhuma criança merece morrer sozinha, independente dos pecados do pai.
Então Fernando recebeu uma ligação. Saiu, voltou pálido.
“O presídio”, ele disse. “Marco Almeida… ele sabe. Sobre João. Sobre o funeral. Os guardas o colocaram em vigilância contra suicídio. Ele pergunta se alguém… se alguém veio pelo menino dele.”
A capela silenciou.
Miguelão levantou-se. “Coloque no viva-voz.”
Fernando hesitou, mas discou. Um instante depois, uma voz quebrada ecoou pela capela.
“Alô? Tem alguém aí? Por favor, alguém veio pelo meu filho?”
“Marco Almeida”, disse Miguelão, firme. “Aqui é Miguel Oliveira, presidente dos Cavaleiros do Asfalto. Estou com trezentos e doze motociclistas de dezessete clubes diferentes. Todos estamos aqui pelo João.”
Silêncio. Depois, soluços. Choros profundos, arrancados das entranhas de um homem que perdera tudo.
“Ele adorava… adorava motos”, Marco engasgou. “Antes de eu estragar tudo. Antes de… Ele tinha uma moto de brinquedo. Dormia com ela todas as noites. Dizia que queria pilotar quando crescesse.”
“Ele vai”Ele vai pilotar”, prometeu Miguelão, enquanto trezentas e doze motos rugiam no cemitério, fazendo a terra tremer como se o próprio céu estivesse chorando por João Almeida.