A terra caiu pesadamente sobre a tampa do caixão.
Cada batida surda atravessava o peito de Estela. A filha dela, Leonor, morrera de repente numa estrada encharcada pela chuva, com apenas dezoito anos de idade. Ao seu lado, o marido, Vicente, destacava-se, o rosto uma máscara que ela nunca conseguira decifrar. Em vinte anos de casamento, nunca revelara o que se escondia por trás daquela expressão contida.
“Está na hora de ir,” disse ele, quando o luto começou a dissipar-se. No carro, falou com firmeza e pragmatismo. “Temos de ir ao centro de doações. Precisamos reunir os pertences da Leonor e distribuí-los imediatamente.”
Estela sentiu um gelo apertar-lhe o coração. “Vicente, o funeral acabou há poucas horas.”
“Exatamente por isso,” respondeu ele, os olhos fixos na estrada. “Prolongar só piora. É como arrancar um penso. Rápido é mais bondoso.”
Aquele homem parecia-lhe um estranho. Ou talvez ela estivesse, finalmente, a vê-lo como ele era. Nessa noite, acordou com a voz abafada dele no corredor. “Está tudo sob controlo,” sussurrou ao telefone. “Amanhã despachamos as coisas. Não, ela não suspeita de nada.”
Na manhã seguinte, Vicente trouxe caixas para o quarto. “Os carregadores vêm depois de amanhã,” anunciou. “Hoje, tudo deve ser empacotado.” Entregou-lhe uma lista com cada aspecto da vida de Leonor organizado para ser descartado.
“Vicente, eu não consigo,” suplicou ela, a voz a quebrar-se.
A expressão dele contorceu-se de raiva. “Para de te agarrar ao passado! Achas que isto é fácil para mim?” Depois, suavizou e abraçou-a. “Desculpa,” murmurou. “Isto vai ajudar-nos a ambos a recuperar. Confia em mim.”
Ela anuiu levemente, demasiado exausta para lutar. Talvez ele tivesse razão.
Sozinha, Estela entrou no quarto de Leonor. Estava luminoso e quente, preservado no tempo. Sentou-se na cama onde tinham cochichado durante horas sobre a escola, os rapazes, e o sonho da filha em estudar biologia marinha. Abriu o armário e começou a dobrar as roupas, cada uma uma memória. O vestido da formatura. Um cachecol. Depois, o vestido de seda preferido de Leonor. Estela levou-o ao rosto, inspirando o aroma suave que ainda restava da filha.
Vicente entrou sem bater. Arrancou-lhe o vestido das mãos. “Isto não vai ajudar ninguém agora. Não te tortures.” Atirou-o para um saco de doações e saiu.
Estela olhou para a porta, a determinação a apertar-se dentro dela. Algo não estava certo. O olhar dela pousou na mochila de Leonor. Dentro, entre os livros, encontrou um bilhete dobrado, escrito na letra apressada e desconfortável da filha.
*Mãe, se vires isto, procura atrás da minha cama imediatamente. Vais perceber.*
O coração disparou. Ajoelhou-se. Uma caixa preta selada estava colada ao canto mais escondido da cama. Os passos de Vicente ecoaram no corredor quando ela a tocou.
Ao jantar, Estela já escondera a caixa no exaustor da casa de banho, o único lugar que Vicente nunca revistava. Desceu as escadas com a máscara da dor no rosto.
“Fiz uma grande doação à escola,” disse Vicente, sobre a comida entregue em casa. “Vão colocar uma placa em memória da Leonor.”
Estela observou-o atentamente. Onde arranjara dinheiro? Os papéis que descobrira revelavam dívidas. A menos que… fosse o seguro.
“É generoso,” respondeu com calma, “considerando as nossas finanças.”
“Os negócios melhoraram,” encolheu os ombros. “À memória da Leonor.” Ergueu o copo. Quando se virou, ela reparou num tremor breve da mão dele sobre a bebida dela. Paranoia? Ou um aviso?
“Vou tomar um calmante,” disse, levantando-se. Mais tarde, no quarto, Vicente esperava com água e dois comprimidos desconhecidos. Observou-a de perto quando ela fingiu engolir. Assim que saiu, cuspiu-os para um lenço. Iria testá-los depois.
Pela manhã, sabia que tinha de agir. “Preciso passar pelo trabalho,” mentiu. “Documentos para assinar.”
“Chamo um táxi,” insistiu ele. “Vou seguir o percurso para ter certeza de que chegaste em segurança.”
Um frio percorreu-lhe o corpo. Ele vigiava cada movimento. Improvisou, saindo um quarteirão antes e enviando uma mensagem à única pessoa em que confiava: Rui Figueiredo, um velho amigo da família e investigador reformado. *Urgente. Vida ou morte.*
Encontraram-se vinte minutos depois num café à beira-rio. “Estela,” murmurou ele, preocupado. “O que se passa?”
“A Leonor não morreu por acidente,” exclamou ela. “O Vicente planeou tudo pelo seguro.” Agora quer livrar-se de mim também.”
O rosto de Rui ficou tenso quando ela lhe mostrou as fotografias dos documentos. Leonor, sagaz como sempre, reunira tudo: as dívidas de Vicente, a amante, as apólices generosas, e mensagens comprometedoras de um mecânico sobre “resolver o problema com a enteada.”
“E isto,” acrescentou, mostrando-lhe os comprimidos no lenço.
Rui fotografou-os. “Vou mandar testar. Se estiver certo, é suficiente. Usa isto.” Deu-lhe um microfone do tamanho de um botão. “Grava diretamente para mim. Põe-no a falar.”
“Tenho de voltar,” disse ela. “Os originais ainda estão em casa.”
“Cuidado, Estela,” avisou. “A tua segurança vem primeiro.”
Quando regressou, os carregadores ainda estavam lá. Vicente supervisionava-os com frieza. “Onde estiveste?” exigiu.
“A reunião demorou mais,” respondeu calmamente.
Enquanto ele os supervisionava, ela esgueirou-se para a casa de banho. A caixa desaparecera.
O terror atingiu-a. Ele sabia. Saiu e parou, gelada. Vicente estava à espera.
“Perdeste alguma coisa?” perguntou suavemente. Balançou um *pen drive*—aquele da caixa da Leonor.
“A Leonor era esperta,” disse baixinho. “Demasiado. Tornou-se um problema.”
“Problema para quê?” perguntou Estela, o coração aos saltos. O microfone gravava.
“Para uma vida nova,” encolheu os ombros. “Cansado deste casamento, desta casa. Precisava de dinheiro. A apólice da Leonor foi o primeiro passo. A tua é o próximo.” O tom era prático. “Um acidente trágico. Um marido em luto recebe o seguro e desaparece.”
“És nojento.”
“Sou prático,” respondeu friamente. “A Leonor estragou tudo. Agora tu fazes o mesmo.” Aproximou-se. “Com quem te encontraste? Quem viu os documentos?”
Ela manteve-se em silêncio. Ele levantou o telemóvel. “Não importa. O GPS é útil.” Mostrou-lhe o percurso do táxi, que terminava no Café Riviera. “Agora, quem lá estava?” Acedeu às filmagens de segurança.
Os carregadores gritaram lá em baixo. Vicente arrastou-a para o armário e, com perícia, tapou-lhe os pulsos e a boca. “Fica quieta,” rosnou, trancando a porta.
O pânico cresceu. O microfone. Rui devia ter ouvidoEstela olhou pela última vez para a casa onde tantos sonhos se tinham transformado em pesadelo, respirou fundo e, com os documentos da filha firmemente apertados contra o peito, seguiu Rui para o carro, decidida a recomeçar longe daquele lugar que já não tinha nada a lhe oferecer, exceto memórias de coragem e saudade.