Chamo-me Leonor, tenho 29 anos, e há dois anos a minha vida deu uma volta que nunca esperei. Vivia num apartamento alugado em Lisboa, trabalhava como desenvolvedora de software, ganhava bem e aproveitava a minha independência. Até que os meus pais me ligaram com aquela conversa que ninguém quer ter.
“Leonor, precisamos falar”, disse a minha mãe ao telefone, com a voz tensa e cansada. “Podes vir cá hoje à noite?”
Quando cheguei a casa deles, em Almada, ambos estavam à mesa da cozinha, com papéis espalhados por todo o lado. O meu pai, António, parecia mais velho do que os seus 58 anos, e a minha mãe, Ana, torcia as mãos como sempre fazia quando estava nervosa.
“O que se passa?”, perguntei, sentando-me à frente deles.
O meu pai tossiu antes de falar. “Tive de deixar o emprego no mês passado. Os problemas na coluna pioraram e já não consigo trabalhar na construção civil. Ando à procura de outra coisa, mas nada paga o suficiente.”
Senti um nó no estômago. Sabia que o meu pai tinha problemas de saúde, mas não imaginava que estivesse tão mau.
“Não conseguimos pagar a prestação da casa”, continuou a minha mãe, com a voz a tremer ligeiramente. “Eu ainda trabalho no supermercado, mas é só a part-time. Juntos, ganhamos talvez 1100 euros por mês, e só a prestação são 1500.”
Foi então que me pediram para voltar a viver com eles e ajudar com as contas. Não queriam perder a casa onde viviam há 20 anos. Olhei à volta, para a cozinha onde comia pequeno-almoço em criança, para a sala onde víamos filmes juntos, para o quintal onde o meu pai me ensinou a andar de bicicleta.
Claro que disse que sim. “Eu ajudo.”
Então, deixei o meu apartamento e voltei para o meu quarto de infância. No início, era estranho, mas montei o computador, instalei uma boa ligação à internet e adaptei-me. O meu emprego já era maioritariamente remoto. A situação acabou por funcionar melhor do que esperava. Ganhava bem como desenvolvedora—cerca de 70.000 euros por ano em salário, mas o verdadeiro dinheiro vinha dos bónus. Cada vez que um dos meus programas era vendido a uma grande empresa, recebia uma percentagem. Alguns meses, recebia mais 8.000 ou 10.000 euros.
Usei o meu salário normal para cobrir a prestação da casa, contas, mercearia, seguro do carro e outras despesas da família. Não era um fardo. Mas havia algo que a minha família não sabia: guardava todos os bónus numa conta poupança separada. Nunca lhes disse. Nem aos meus pais, nem ao meu irmão mais velho, Ricardo, que vivia na Amadora com a mulher, Daniela, e os dois filhos. Amava a minha família, mas sabia o que aconteceria se descobrissem o meu verdadeiro rendimento. Encontrariam maneiras de gastá-lo. O Ricardo estava sempre a pedir dinheiro.
“Ó Leonor, podes emprestar-me 400 euros? O Tomás precisa de uns ténis novos para o futebol.”
“Leonor, a mãe da Daniela precisa de uma operação e estamos com dificuldades.”
Ajudava quando podia, com o meu salário normal, mas nunca falei dos bónus. Em dois anos, tinha juntado quase 150.000 euros. Planeava comprar a minha própria casa em breve.
Tudo corria bem, exceto pelos jantares de família. O Ricardo e a Daniela apareciam todos os domingos, e essas refeições eram um suplício. A Daniela nunca gostou de mim, e fazia questão de mostrar.
“Leonor, que camisa é essa?”, dizia, olhando-me como se tivesse saído de um caixote do lixo. “Vestes-te como se ainda estivesses no secundário. Não te importas com a tua imagem?”
O Ricardo limitava-se a rir. “A Daniela só quer ajudar, mana. Ela percebe de moda.”
O pior era ver a Daniela exibir roupas que comprara com o dinheiro que o Ricardo me pedia. Desfilava com um vestido novo de marca, a falar da importância de “investir em peças de qualidade”. Eu fugia para o meu quarto assim que podia, alegando que tinha trabalho. Ouvia a voz da Daniela a subir as escadas: “Lá vai ela outra vez, esconder-se na sua bolha. Nunca vai crescer se continuar a fugir da vida real.”
Mas mantive-me calada e continuei a poupar. Em breve, não teria de lidar com isso.
Decidi então dar uma pausa e fui passar o fim-de-semana à casa de campo da minha amiga Beatriz. Quando voltei no domingo à noite, vi demasiados carros na entrada e luzes em todas as janelas. Brinquedos espalhados pelo alpendre. Abri a porta e deparei-me com o caos.
O Tomás e a Clara corriam pela sala, o Ricardo subia e descia as escadas com caixas, e a Daniela dava ordens como se fosse dona da casa.
“O que se passa aqui?”, perguntei, parada à porta com a minha mala.
Todos pararam e olharam para mim. Os meus pais saíram da cozinha com ar culpado.
O Ricardo pousou a caixa. “Olha, mana. Houve uma mudança de planos. Perdi o emprego e não conseguimos pagar a renda.”
Olhei para as caixas e móveis espalhados. “Então vão ficar aqui?”
“Só temporariamente”, disse o Ricardo. “Até arranjar outra coisa.”
A Daniela aproximou-se com um sorriso falso. “Agradecemos muito que nos deixes ficar aqui. Claro que vamos ter de fazer alguns ajustes. O teu quarto seria perfeito para as crianças. Podes mudar-te para o quartinho no fim do corredor.”
“Não vou sair do meu quarto”, respondi, firme. “Trabalho de casa. Preciso do meu espaço e de internet decente.”
O sorriso da Daniela desapareceu. “Bem, acho que as necessidades das crianças deviam vir primeiro.”
“E eu sou quem paga a prestação e as contas”, retorqui.
A Daniela cruzou os braços. “Isso não te dá o direito de seres egoísta. Somos família.”
“Família que nunca me perguntou se queria hóspedes”, respondi.
“Está bem”, disse a Daniela, quando me recusei a ceder. “Fica com o teu quarto precioso. Mas não esperes que sejamos gratos quando não consegues ser minimamente compreensiva com a família em dificuldades.”
Subi as escadas e fechei a porta. Foi o início do pesadelo.
A casa estava sempre barulhenta. O Ricardo passava os dias no sofá, a fazer meias ligações para empregos que nunca apareciam. Enquanto isso, a Daniela agia como se estivesse a fazer-nos um favor. O pior era tentar trabalhar. As crianças batiam à porta e interrompiam as minhas reuniões.
“Podias tentar manter as crianças mais calmas durante o meu horário de trabalho?”, perguntei ao Ricardo, certa manhã.
“Elas estão só a ser crianças”, respondeu, sem tirar os olhos do telemóvel. “Não percebes porque não tens filhos.”
O ponto de rutura chegou dois meses depois. Regressei de umas compras e a internet não funcionava. Fui ver o router e descobri que alguém cortara o cabo Ethernet com uma tesoura. O fio estava limpadamente cortado ao meio.
Fiquei furiosa. Desci as escadas com o cabo cortado na mão. “Quem fez isto?”
A Daniela estava no sofá, a pintar as unhas. Olhou para o cabo e riu-se. “Ah, isso. O Tomás estava a brincar com a tesoura e deve ter entrado no teu quarto. Crianças são crianças.”
“Isto não tem graça!”, griteiE nesse momento percebi que, por mais que o sangue nos unisse, algumas feridas nunca cicatrizam.