**PARTE 1**
**Capítulo 1: O Silêncio do Lobo**
A gente se acostuma com o silêncio.
É a primeira coisa que não te contam quando entras para o clube. Falam da irmandade, da estrada aberta, do respeito e do perigo. Mas não falam do silêncio. É um tipo específico de quietude—aquele que suga o ar do ambiente no segundo em que as tuas botas cruzam a porta.
Eu estava sentado num canto da *Tasca do Zé*, um daqueles sítios à beira da estrada nacional, perto de Évora. Cheirava a café velho, bacon frito e lixívia. Um relicário de um Portugal que ia desaparecendo aos poucos, com a tinta a descascar e o néon a piscar.
Eu ocupava muito espaço. Tenho dois metros e cento e trinta quilos de barba e músculo, com um colete que grita “afasta-te” para 99% das pessoas. As minhas insígnias foram ganhas a sangue e quilómetros, e o couro estava macio do vento e da chuva.
Quando entrei, a conversa não abrandou—morreu.
O casal no canto deixou de se dar as mãos, os olhos fixos nos pratos.
O camionista ao balcão parou de mastigar as torradas, a mão a tremer perto do bolso.
A empregada, uma senhora doce chamada Geni, que já viu de tudo, acenou com a cabeça. Ela sabe que eu deixo boa gorjeta. Sabe que não estou ali para armar confusão. Só quero o cozido à portuguesa e um pouco de paz.
Mas, para os outros? Sou uma estatística. Uma ameaça. Um crime ambulante à espera de acontecer.
Estava a olhar para o meu café sem açúcar, a ver o vapor subir, tentando ignorar os olhares a furar-me as costas. Às vezes, esta vida é solitária. Construímos um muro de couro e rugido à nossa volta para manter o mundo afastado, mas, nos momentos de silêncio, perguntamo-nos se não nos encurralámos a nós próprios.
E então, a campainha da porta tocou.
O ambiente não mudou—despedaçou-se.
Não era a polícia. Não era um clube rival à procura de encrenca.
Era uma menina.
Não devia ter mais de seis anos. Trazia um vestido rosa desbotado, manchado de terra e talvez sumo de uva—ou sangue seco. Os ténis estavam gastos até à sola, os atacadores amarrados em três nós.
O cabelo dela era uma onda loura emaranhada, como se não visse uma escova há uma semana.
A tasca ficou em silêncio mortal. Até o zumbido do frigorífico parou.
Ela ficou à porta, a esquadrinhar a sala. Os olhos eram grandes, azuis e cheios de medo. Parecia uma corça paralisada pelos faróis de um camião, a tremer com uma energia maior do que o seu corpinho.
Olhou para o camionista. Olhou para o casal.
Depois, prendeu o olhar no meu.
O sangue gelou-me nas veias.
Normalmente, as crianças escondem-se atrás das pernas das mães quando me veem. Choram. Apontam. Perguntam por que é que o homem parece um urso.
Esta menina não se escondeu.
Respirou fundo, um tremor a percorrer-lhe o corpo franzino, e endireitou os ombros.
Começou a caminhar.
Atravessou o chão de tijoleira, passando pelo casal assustado, pela Geni paralisada.
“Querida, não incomodes o senhor,” sussurrou a Geni, a voz a tremer. “Vem cá, deixa-me servir-te um leite com chocolate.”
A menina ignorou-a. Nem pestanejou.
Aproximou-se da minha mesa. O nariz dela mal passava da borda.
Parei de respirar. Não me mexi. Não queria assustá-la, mas sabia que a minha simples presença costumava ser suficiente. Mantive as mãos em cima da mesa, visíveis, as palmas abertas.
Ela fitou-me por um momento, a avaliar. Depois, enfiou a mãozinha suja no bolso e atirou um punhado de moedas para cima da mesa, ao lado da minha fatia de bolo de chocolate.
O barulho ecoou na sala silenciosa. Soou como um tiro numa biblioteca.
Uma nota de cinco euros amarrotada. Duas moedas de cinquenta cêntimos. Um tostão brilhante.
**Capítulo 2: O Contrato**
Ela olhou-me nos olhos. O lábio inferior tremia, mas o olhar era de aço. Havia fogo lá dentro, enterrado sob camadas de medo.
“És um *Malditos*?” perguntou, a voz fina e quebrada.
Baixei lentamente a chávena de café, controlando cada movimento.
“Ando com um clube,” respondi, a voz a soar como pedras a ranger. “Porque perguntas, pequenina?”
“O meu pai…” Ela parou, limpando o nariz com a mão, deixando uma nódoa na face. “O meu verdadeiro pai disse que vocês são monstros. Que toda a gente tem medo de vocês. Que magoam pessoas.”
O julgamento na sala era tão denso que dava para cortar. Sentia os olhares dos outros clientes a queimar-me, à espera que eu explodisse, que o monstro saísse. Esperavam que eu gritasse com ela, que a mandasse embora.
“O que queres, miúda?” perguntei, mais suave desta vez. Inclinei-me ligeiramente, tentando aproximar o meu mundo do dela.
Ela empurrou o dinheiro amachucado na minha direção.
“Quero contratar-te.”
Pisquei os olhos. Sob a barba, o queixo caiu. Já me ofereceram dinheiro por muita coisa—segurança, transporte, intimidação. Mas nunca por uma criança de seis anos.
“Contratar-me?”
“Cinco euros e cinquenta e um cêntimos,” sussurrou. As lágrimas escaparam-lhe finalmente, limpando trilhos na sujidade das faces. “Para me levares a casa.”
Olhei para o dinheiro. Era provavelmente tudo o que ela tinha. O tostão estava polido, como se ela o tivesse esfregado para dar sorte.
“Porque precisas que eu te leve a casa?” perguntei, um buraco a formar-se no estômago. “Onde está a tua mãe?”
“A mãe está em casa,” respondeu, engasgada. “Mas… o homem mau também está lá.”
O ar à volta pareceu congelar. A tasca ficou claustrofóbica de repente.
“Quem?” perguntei. A palavra saiu como um rosnar. Não consegui evitá-lo.
“O meu padrasto,” chorou, a compostura a quebrar de vez. “Está a partir coisas outra vez. Atirou a televisão. A mãe está no chão a chorar e não se levanta. Eu… não consigo fazê-lo parar.”
Olhou para mim, suplicante. As mãos tremiam.
“Preciso de um monstro,” soluçou. “Preciso de um monstro para o assustar. Por favor. Ele está a magoá-la. Disse que a ia matar.”
O silêncio na tasca era ensurdecedor. Mas agora, o medo não era direcionado a mim. Era horror. Era a perceção coletiva de que o mal não estava ali, sentado no banco de couro—o mal estava na casa ao fundo da rua, onde devia haver segurança.
Olhei para os cinco euros amarrotados.
Olhei para o tostão.
Depois, olhei para as nódoas negras dela. Não as tinha visto antes, escondidas sob a sujidade e a sombra. Uma marca escura no queixo. AE naquele momento, enquanto a segurava pela mão e marchávamos em direção à casa onde o medo vivia, percebi que às vezes os monstros existem mesmo—mas hoje, o monstro era eu, e vinha para acabar com o pesadelo dela.





