Herói Perde Tudo por Salvar Criança, mas no Dia Seguinte Surpresa o Esperava6 min de lectura

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O calor em Lisboa no pico de julho não é apenas uma temperatura; é uma presença física, um peso esmagador que rouba o ar e seca a alma. Na Zona Industrial da Bobadela, o asfalto parecia derreter sob o sol implacável das três da tarde, criando miragens de água na estrada que enganavam os olhos, mas não o corpo. Dentro da “Oficina Valente”, a sensação térmica beirava os quarenta e cinco graus. O ar estava pesado, saturado com o cheiro penetrante de óleo queimado, borracha vulcanizada e o suor ácido de homens que trabalhavam no limite das forças.

João Silva enxugou a testa com o dorso da mão, deixando uma mancha negra de graxa na pele já marcada pelo sol e pelo trabalho duro. Estava há seis horas debaixo de um velho Renault Clio que parecia ter sobrevivido a uma guerra, lutando para soltar uma transmissão que teimava como uma mula. Os nós dos dedos estavam em carne viva, as unhas negras de sujeira incrustada, e as costas doíam em protesto pela posição forçada. Mas João não reclamava. Não podia.

—Silva! —o grito ecoou na oficina, cortando o barulho das chaves pneumáticas como um chicotada—. Vais demorar o dia todo com esse ferro-velho? O cliente chega numa hora, e quero esse carro fora do elevador!

José Valente, o dono da oficina, observava da porta do seu escritório com ar-condicionado. Vestia uma camisa de marca imaculada, que contrastava obscenamente com a sujeira que cobria os empregados. José era um homem baixo, mas com um ego que não cabia no prédio; um tirano moderno que adorava exercer seu pequeno poder sobre aqueles que dependiam dele para comer. Não era apenas um mau patrão; era uma má pessoa, daquelas que olham por cima do ombro e humilham os outros para se sentirem grandes.

—Já está quase, senhor Valente —respondeu João, saindo debaixo do carro com um sorriso forçado—. Era só um parafuso do cárter emperrado, mas já saiu.

—Menos conversa e mais mãos ao trabalho, Silva —cuspulhe Valente, olhando o relógio de ouro no pulso—. Lembra-te que há uma fila de miúdos no desemprego querendo o teu lugar pela metade do salário. Não és insubstituível. Ninguém é.

João baixou a cabeça e assentiu, engolindo a raiva que queimava na garganta mais que o próprio calor. Sabia que era mentira. Era o melhor mecânico da oficina, o único que diagnosticava problemas pelo ouvido quando as máquinas falhavam. Mas também sabia que Valente tinha razão numa coisa: a necessidade. João tinha quarenta e dois anos, uma prestação de uma casa modesta no Cacém que o sufocava todos os meses, e três filhos que cresciam a velocidade da luz: Tiago, que precisava de aparelho nos dentes; Beatriz, que sonhava em ir para a universidade; e o pequeno Rodrigo, que mal começara a escola. A esposa, Catarina, limpava escritórios na Avenida da Liberdade, sacrificando a coluna para trazer um salário que mal dava para a comida.

O medo de perder o emprego era o motor que o mantinha calado, suportando insultos, horas extras não pagas e desprezo. “Faz por eles”, repetia como um mantra sagrado. “Aguenta mais um pouco, João. Só mais um pouco.”

Às quatro da tarde, o sol começou a baixar, mas o calor continuava sufocante. João saiu um momento para beber água do bebedouro público, buscando alívio. A rua do polígono estava deserta, exceto por um ou dois camiões de entrega.

Foi então que a viu.

A princípio, pensou ser uma miragem do calor. Uma figura pequena, com uniforme escolar de saia cinza e blusa branca, caminhava cambaleante do outro lado da rua. Parecia deslocada, como uma aparição. Não havia escolas por perto, só armazéns e fábricas. A menina, de uns oito anos, arrastava os pés, com a cabeça baixa e o cabelo louro colado à testa de suor.

João franziu a testa, esquecendo a garrafa de água. Algo não estava bem. A menina parou, levou a mão ao peito e, como uma boneca com os fios cortados, caiu no cimento escaldante.

O baque do corpo no chão foi quase imperceptível, mas para João soou como um tiro.

—Eh! —gritou, largando a garrafa—. Menina!

Olhou em volta. Dois operários da oficina vizinha haviam saído para fumar, mas ficaram parados, olhando com aquele misto de curiosidade e medo de se envolver. Ninguém se mexeu. O “não te metas” pairava no ar.

Mas João não pensou. O corpo reagiu antes do cérebro. As pernas, cansadas e doloridas, encontraram força nova, e ele atravessou a rua correndo, esquivando-se de uma carrinha que buzinou furiosa.

Ao chegar perto dela, o coração gelou. A menina estava de costas. A pele, que devia estar corada pelo calor, estava acinzentada, quase azul nos lábios. Os olhos fechados, o peito mal se mexia. João ajoelhou-se, ignorando a dor nos joelhos contra o asfalto quente.

—Ó menina! Ouviste-me? —deu-lhe palmadinhas suaves no rosto. A pele ardia, mas ao mesmo tempo estava fria e pegajosa. Mau sinal. Muito mau.

Aproximou o ouvido da boca dela. A respiração era um assobio fraco, irregular. Dois dedos no pescoço. O pulso era um bater frenético e fraco, como um pássaro preso.

—Chamem uma ambulância! —gritou para os homens na outra calçada, que continuavam parados—. Caramba, não fiquem aí! Ela está a morrer!

Um deles sacou do telemóvel com dificuldade, mas João sabia como as coisas funcionavam. Uma ambulância na hora de ponta, num polígono industrial nos arredores, podia demorar vinte minutos, meia hora. Olhou para a menina. Os lábios estavam ficando roxos. Não tinha vinte minutos. Talvez nem cinco.

A decisão veio num instante. Passou os braços fortes e sujos de graxa por baixo do corpo frágil dela e levantou-a. Pesava tão pouco que lhe deu vontade de chorar. Virou-se e correu para a sua velha carrinha Peugeot Partner estacionada na esquina.

Estava a abrir a porta do pendura quando uma voz conhecida, carregada de veneno, o parou.

—Silva! Que raio pensas que estás a fazer?

José Valente estava na porta da oficina, braços cruzados, o rosto vermelho de raiva. Tinha visto tudo, mas não parecia importar-se com a tragédia—só com a interrupção do trabalho.

—Senhor Valente, esta menina está a morrer —gritou João, com ela nos braços, sentindo a vida escapando-se—. Desmaiou. Tenho que levá-la ao hospital. A ambulância vai demorar demais.

Valente desceu os degraus devagar, como um predador sabendo que a presa não tem escapatória.

—Isso é problema meu? Ou teu? —disse com uma frieza que gelava o sangue—. Tens três carros em espera. O dono do BMW chega em vinte minutos. Se saíres agora, deixas o trabalho a meio.

—É uma vida, Valente! —rugiu João, perdendo pela primeira vez o “senhor”. O desespero deu-lhe coragem—. É uma criança! Podia ser a tua filha ou a minha!

—Não é minha filha.João entrou na carrinha com a menina nos braços, acelerou sob o olhar furioso de Valente, e partiu em direção ao Hospital de Santa Maria, sabendo que, mesmo perdendo tudo, tinha feito a única coisa que realmente importava.

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