Quase Meia-Noite Quando a Batida Começou—Um Toque Suave Que Me Aterrorizou Mais Que Qualquer Pancada. Na Chuva Gelada, Não Encontrei um Monstro, Mas uma Criança com Olhos Mais Velhos Que Seus Anos. Ela Não Queria Dinheiro, Apenas Saber Como Era um Lar. E Nos Próximos Cinco Minutos, Meu Mundo Desmoronou.6 min de lectura

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PARTE 1: A BATIDA NA ESCURIDADE

O relógio digital do micro-ondas marcava 23:42. Lá fora, o vento uivava pelas calhas da minha rua tranquila nos arredores de Lisboa, um vento que sacudia as janelas e fazia agradecer pelo vidro duplo e pelo aquecimento central. Eu estava sentado no sofá, rolando sem parar o telemóvel, tomando uma cerveja morna e tentando ignorar a sensação de solidão que invadira a casa desde o divórcio, finalizado no ano passado. A casa era grande demais para uma pessoa só. O silêncio era ensurdecedor.

Foi então que ouvi.

Toc. Toc. Toc.

Não era a campainha. Não era uma batida firme. Era um som hesitante e ritmado contra a pesada porta de carvalho. O estômago apertou-se. Naquela zona, ninguém bate à porta depois das 21h sem ser por um incêndio ou uma emergência policial. E, definitivamente, não batem assim.

Silenciei a televisão. Permaneci imóvel, esperando que fosse imaginação minha, culpa da tempestade lá fora.

Toc. Toc. Toc.

Distinto. Deliberado. Real.

Levantei-me, com as articulações a ranger, e dirigi-me à entrada. Não acendi a luz do alpendre de imediato. A paranóia é um efeito colateral de se viver sozinho em 2024. Lê-se as notícias. Conhecem-se os golpes. Alguém finge estar aflito, abres a porta, e três tipos com passamontanas invadem. Olhei pelo olho mágico, mas a condensação da chuva gelada embacirava a lente. Só via uma pequena sombra escura.

“Quem é?” perguntei, tentando soar mais firme do que me sentia.

Nenhuma resposta. Apenas o vento a chicotear as paredes.

Pensei em ligar para a polícia. Mas algo me impediu. Talvez o tamanho da sombra. Parecia pequena demais para ser uma ameaça. Destranquei a porta, mantive a corrente e abri um pouco, uns dez centímetros.

O ar frio entrou de imediato, cortante. E lá estava, em cima do tapete de boas-vindas, encharcada até aos ossos, uma menina.

Não devia ter mais do que oito ou nove anos. Vestia um casaco cor-de-rosa demasiado grande, com as mangas enroladas para revelar mãos pálidas e trémulas. Os ténis estavam gastos até às solas, encharcados de neve derretida. O cabelo colado à testa, a água a pingar-lhe do nariz.

Mas foram os olhos que me gelaram. Não choravam. Estavam assustadoramente calmos, profundos, cheios de um cansaço que nenhuma criança deveria conhecer.

“Não tenho dinheiro,” disse por instinto, ainda desconfiado. Era um reflexo. Senti-me culpado mal as palavras saíram, mas estava confuso. Onde estavam os pais dela? Era isto uma armadilha?

Ela abanou a cabeça devagar. Os lábios tinham um tom azulado. Não olhou para o calor do corredor atrás de mim; fixou-se no meu rosto.

“Não quero dinheiro, senhor,” sussurrou. A voz dela era frágil, como folhas secas.

“Estás perdida? Precisas que chame a polícia?” perguntei, a mão a aproximar-se do telemóvel no bolso.

“Nada de polícia,” disse, um clarão de pânico nos olhos. “Por favor. Nada de polícia.”

“Então o que queres? Está um frio de rachar lá fora.”

Ela inspirou fundo, o peito pequeno a subir e descer sob o casaco molhado. Olhou para os ténis encharcados e depois para mim.

“Só quero entrar,” disse.

“Miúda, eu não posso…”

“Cinco minutos,” interrompeu. “Só quero ficar numa casa. Só cinco minutos.”

Encantei-a. “O quê?”

“Não estou com fome. Não quero roubar nada. Prometo.” Abraçou-se, a tremer violentamente. “Só… esqueci como é. Ter uma casa. Estar num sítio quente e calmo. Só quero ficar um pouco. Por favor. Cinco minutos. Depois vou embora.”

O coração batia com força contra as costelas. Isto era loucura. Era perigoso. Não conhecia aquela criança. Mas vê-la ali, na chuva gelada, a pedir não comida, não dinheiro, mas apenas a sensação de um lar… partiu algo dentro de mim. O cinismo que construíra como uma fortaleza desmoronou-se.

Tirei a corrente. Abri a porta por completo.

“Entra,” disse, a voz mais suave. “Entra antes que congele.”

PARTE 2: O SILÊNCIO DO CALOR

Ela atravessou a porta com cuidado, olhando para baixo como se os sapatos sujos ofendessem o chão.

“Tira isso,” disse gentilmente. “Vou buscar uma toalha.”

Ela descalçou os ténis. As meias eram desiguais e cheias de buracos. Corri para o armário, peguei numa toalha e num cobertor de reserva para visitas que nunca chegavam. Quando voltei à sala, ela não estava a olhar para a televisão de 65 polegadas. Nem para o tablet caro na mesa de centro.

Estava no meio da sala, de olhos fechados, a respirar fundo.

“Cheira a roupa lavada,” murmurou. “E a madeira.”

Envolvi-a no cobertor. Ela estremeceu no início, depois afundou-se no tecido, puxando-o com força. “Senta,” insisti. “Por favor.”

Ela sentou-se na borda da poltrona bege, sem se recostar, a postura rígida. Olhou para a lareira, onde os troncos falsos estavam desligados. Apertei o comando e as chamas acenderam-se atrás do vidro. Os olhos dela alargaram-se, refletindo o brilho alaranjado.

“Vou fazer-te um chocolate quente,” disse. “Não protests.”

Ela não protestou. Apenas olhou para o fogo.

Fui para a cozinha, as mãos a tremer enquanto aquecia o leite. A mente acelerava. Quem era ela? De onde vinha? Preciso de chamar alguém. Não posso deixar uma criança voltar para a noite.

Quando voltei com a chávena fumegante, ela estava a passar a mão pelo tecido da poltrona, traçando o padrão com uma reverência que as pessoas reservam a objetos sagrados.

“Toma,” disse, entregando-lhe a chávena.

Ela segurou-a com ambas as mãos, deixando o calor penetrar-lhe na pele. Não bebeu logo. Aproximou-a da face.

“Obrigada,” disse.

“Como te chamas?” perguntei, sentando-me na mesa de centro, mantendo distância.

“Leonor,” respondeu.

“Leonor, onde estão os teus pais?”

Ela deu um gole, um sorriso breve tocando-lhe os lábios ao sentir o chocolate. “A minha mãe está lá fora. Na rua.”

“Lá fora?” Levantei. “Nesta tempestade?”

“Vivemos no carro,” disse Leonor, simplesmente, como quem comenta o tempo. “Mas o carro ficou sem gasolina ontem. O aquecedor não funciona quando o motor está desligado. Hoje ficou muito frio. Os meus dedos começaram a doer.”

Olhou novamente para o fogo. “A minha mãe chorou. Adormeceu a chorar. Não quis acordá-la. Só… vi a tua luz. Vi fumo da chaminé hoje mais cedo. Só queria lembrar-me.”

“Lembrar-te do quê?”

“Como era quando tín”Como era quando tínhamos uma sala de estar, antes de o meu pai ir embora, antes do despejo,” respondeu, com os olhos claros e devastadoramente honestos. “É difícil lembrar o que é ‘calor’ quando passamos tanto tempo com frio — eu tinha medo de me esquecer para sempre.”

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