Num boteco à beira da estrada, uma criança silenciou a todos com um gesto que partiu meu coração6 min de lectura

Compartir:

PARTE 1: A Proposta
Acostumas-te aos olhares. É a primeira coisa que aprendes quando te juntas a um clube. Aprendes que, para o resto do mundo, já não és uma pessoa. És um número. Uma ameaça. A razão pela qual eles fecham as portas do carro quando paras no sinal vermelho.

Estava sentado no Café do Zé, perto da estrada nacional 2 no Alentejo, a tentar saborear um café que sabia a borraqueada e uma fatia de bolo de arroz que devia ter sido feito na semana passada. Eram cerca das 14h00 de uma terça-feira. O sítio estava calmo—apenas o zumbido do frigorífico atrás do balcão e o murmúrio baixo de dois camionistas no fundo da sala.

Eu ocupava espaço. Sabia disso. Tenho um metro e noventa, cento e trinta quilos de barba e tatuagens, com um colete que grita “afasta-te” à gente decente. O capacete estava em cima da mesa, riscado e cheio de autocolantes de todas as tascas entre aqui e a Feira da Ladra. Não estava à procura de problemas. Só de cafeína.

Mas o ambiente mudou no instante em que a campainha da porta tocou.

Não era a polícia. Nem um rival.

Era uma menina. Não devia ter mais de seis anos. Vestia um vestido cor-de-rosa já gasto, com manchas de terra na bainha, e sapatilhas com os velcros soltos. O cabelo loiro estava desgrenhado, como se tivesse corrido contra o vento.

O café ficou em silêncio. Daquela maneira que até se ouve uma mosca a voar. A empregada, uma senhora mais velha chamada Lurdes que me servira café sem me olhar nos olhos, parou no meio do gesto. Os camionistas interromperam a mastigação.

A menina parou na entrada, a olhar em volta. Os olhos eram grandes, azuis e cheios de medo. Mas havia mais neles. Determinação.

Olhou para os camionistas. Abanou a cabeça. Olhou para o homem de fato a comer uma salada num canto. Abanou a cabeça outra vez.

Depois, os olhos dela prenderam-se a mim.

Suspirei por dentro. Ótimo. Lá vem ela. Vai perguntar onde fica a casa de banho, e a mãe vai aparecer a gritar comigo por olhar para a filha dela.

Mas ela não perguntou pela casa de banho.

Começou a caminhar. Um pé à frente do outro, marchando pelo chão de linóleo quadriculado. Estava a vir direitinha ao motard assustador no canto.

“Menina, não incomodes o senhor,” sussurrou a Lurdes, a voz a tremer um pouco.

A menina ignorou-a. Aproximou-se da minha mesa. Era tão pequena que o nariz mal chegava à borda. Baixei lentamente a chávena de café, a encará-la por cima dos óculos escuros. Não sorri. Não franzi a testa. Só esperei.

Ela enfiou a mãozinha no bolso e tirou um punhado de algo. Atirou-o para cima da mesa ao lado do bolo.

Era uma nota de cinco euros amachucada, duas moedas de cinquenta cêntimos e um cêntimo.

Olhou-me diretamente nos olhos, o queixo a tremer, tentando ser corajosa.

“És dos Motards de Fátima?” perguntou. A voz era fina mas suficientemente alta para todos ouvirem.

Recostei-me, o couro do colete a ranger. “Ando com um clube, pequenina. Porquê?”

“O meu pai diz que vocês são os maus,” disse ela. “Diz que batem nas pessoas e que ninguém se mete convosco.”

Um músculo da minha mandíbula contraiu-se. “O teu pai fala muito.”

“Ele diz que vocês são monstros,” continuou, as lágrimas a encherem-se dos olhos azuis. “Diz que toda a gente tem medo de vocês.”

Olhei em volta. Os camionistas estavam a olhar. A Lurdes agarrava a cafeteira como uma arma. Sim, todos tinham medo.

“O que queres, miúda?” perguntei, a voz num tom grave. “Estou a comer.”

Ela empurrou o dinheiro na minha direção.

“Quero contratar-te,” disse.

Pisquei os olhos. “Contratar-me?”

“Cinco euros e um cêntimo,” apontou para o montinho. “É tudo o que tenho. Chega?”

“Chega para quê?”

Ela respirou fundo, a tremer. “Para me levares a casa.”

Franzi a testa. “Onde moras?”

“A três quarteirões daqui.”

“Porque não vais sozinha? Ou chama os teus pais?”

Ela baixou os olhos para as sapatilhas. “Não posso ir sozinha. Ele está lá.”

O ar no café pareceu perder dez graus.

“Quem está lá?” perguntei, baixando a voz para que só ela ouvisse.

“O homem mau,” sussurrou. “O padrasto. Ele… está a partir coisas outra vez. A mãe está a chorar. E ele disse que se eu voltasse a entrar, ia dar-me uma lição.”

O sangue gelou-me nas veias. Um gelo que queima.

“Ele trancou-te cá fora?”

“Não,” limpou o nariz. “Eu fugi. Mas esqueci-me do Urso. E a mãe precisa de mim. Tenho de voltar. Mas estou com medo. Preciso de um monstro.”

Olhou para mim, as lágrimas a escorrerem.

“Preciso de um monstro para assustar o homem mau. Por favor. Dou-te todo o meu dinheiro.”

Olhei para os cinco euros. Olhei para o rostinho assustado. Olhei para o julgamento nos olhos dos outros clientes, que não faziam ideia do que a miúda estava a pedir.

Levantei-me.

A cadeira raspou no chão. Sobressaí sobre ela. A Lurdes deu um salto, a mão a tremer para pegar no telefone, provavelmente para ligar para o 112.

Estendi a mão—uma mão do tamanho de um presunto, tatuada nos nós. Empurrei o dinheiro de volta para ela.

“Guarda o dinheiro, miúda,” resmunguei.

O rosto dela desfez-se. Parecia que o mundo dela tinha acabado. “Não chega?”

Agarrei no capacete. Tirei os óculos para ela ver os meus olhos.

“Não é pelo dinheiro,” disse. “Não se contrata um motard com notas. Contrata-se com respeito. E acabaste de mostrar mais coragem do que qualquer homem aqui dentro.”

Saí da mesa e olhei para ela.

“Vamos buscar o Urso.”

PARTE 2: A Caminhada
Deixei uma nota de vinte euros em cima da mesa pelo bolo que não acabei e dirigi-me à porta. A menina, que me disse chamar-se Beatriz, apressou-se para acompanhar os meus passos largos.

Ao sairmos do café, o calor alentejano abraçou-nos. A minha mota, uma Harley customizada, brilhava ao sol.

“Vamos de mota?” perguntou, a olhar com admiração.

“Hoje não,” respondi. “Vamos a pé. Quero que ele nos veja a chegar.”

Aquela caminhada foram os três quarteirões mais longos da minha vida. A Beatriz esticou a mão e agarrou-se à minha. A mãozinha desaparecia na minha palma. A luva de couro era áspera, a pele dela macia. O contraste era ridículo. Um gigante barbudo de mota a dar a mão a uma menina de vestido cor-de-rosa.

Os carros abrandavam ao passar por nós. As pessoas olhavam das varandas. Eu olhava de volta. DesafiavaAssim que o caminho acabou e a porta da sua casa se fechou para sempre naquele homem, eu voltei para a estrada, sabendo que, por um breve momento, o monstro dentro de mim tinha servido para algo bom.

Leave a Comment