A Dor que Ninguém Viu: Quando um Grupo de Motociclistas Abriu os Olhos de Todos3 min de lectura

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A vila de Ribeira Serena, no coração de Portugal, orgulhava-se de duas coisas: a vista deslumbrante da Serra da Estrela, coberta de neve no inverno, e a integridade moral dos seus habitantes. O letreiro à entrada, pintado num alegre estilo tradicional, dizia: “Ribeira Serena: Um Bom Lugar para Criar uma Família.” Aos domingos, a torre branca da Igreja da Comunidade, liderada pelo simpático Padre António Mota, era o centro do mundo. Durante a semana, o Presidente da Câmara, Eduardo Silva, reinava no Café da Harmonia, com a sua chávena de café permanentemente agarrada à mão.

Era uma vila construída sobre aparências. As pessoas cumprimentavam-se. Doavam para a venda anual de bolos. Fofocavam em vozes baixas sobre os “menos afortunados”—que, em Ribeira Serena, era um termo educado para a Joana e a Beatriz, que viviam no Parque de Caravanas do Pinhal Velho, nos arredores da vila.

Joana era a tragédia designada da vila, uma mulher consumida pela crise dos opióides que varria o país como um incêndio. Mas Beatriz, de nove anos, era a consequência viva e respirante.

Beatriz sofria de Displasia do Desenvolvimento da Anca (DDA) severa e não tratada. O que poderia ter sido corrigido com uma simples órtese na infância tornara-se, após anos de negligência, uma deformidade debilitante. A sua perna esquerda balançava num arco descontrolado, e a articulação da anca direita rangia osso contra osso. Ela andava com uma marcha dolorosa e desajeitada, um constante arrastar que transformava cada passo numa nova humilhação.

Os “bons cidadãos” de Ribeira Serena viam-na. Viam-na mancar ao sair do autocarro escolar velho. Viam-na esforçar-se para acompanhar as outras crianças, que há muito tinham aprendido a excluí-la das brincadeiras.

Dona Margarida, dona do Mercearia da Margarida, observava Beatriz a arrastar-se pelo corredor, as mãozinhas a segurar um punhado de vales-refeição, e suspirava. “Que pena,” murmurava ao próximo cliente. “Aquela pobre menina. Tal e qual como a mãe.”

O Padre António visitara a caravana uma vez. Deixara uma Bíblia e um panfleto de um programa de recuperação em cima da mesa manchada de Joana, cuidadosamente evitando o lixo pelo chão. Acariciara Beatriz na cabeça, desviando os olhos do ângulo doloroso das suas pernas, e dissera: “Estamos todos a rezar por ti, menina.”

Mas as orações não aliviavam a dor na sua anca. A pena não impedia o ranger constante. A vila decidira ignorá-la, uma história triste para ser lamentada sobre um café, mas não um problema a resolver. Ela era “pobre do bairro,” e em Ribeira Serena, alguns problemas eram considerados além do alcance da graça.

Numa quarta-feira gelada de outubro, com o vento a trazer o primeiro sinal de inverno, Beatriz tinha uma missão. A mãe estava “doente”—a doença cinzenta e trémula que a deixava a chorar ou aos gritos. Mas estavam sem refrigerante, e Joana gritara até Beatriz encontrar quatro euros amarfanhados e uma nota de um euro no fundo de uma carteira.

Era um quilómetro e meio do Pinhal Velho até ao Posto de Gasolina Ribeirense. Para Beatriz, era uma peregrinação agonizante. Cada passo enviava uma pontada de dor da anca até ao joelho. Ela caminhava pelo acostalNo final daquela tarde, enquanto o sol se punha sobre a serra, Beatriz olhou para o céu e sorriu, sentindo pela primeira vez que talvez, só talvez, o mundo pudesse ser um lugar menos doloroso para ela.

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