A madrugada caía pesada sobre a mansão dos Sousa. 3:40 da manhã. O silêncio que António Sousa tanto prezava foi quebrado por um choro agudo vindo do andar de baixo. Ele abriu os olhos no escuro, os maxilares cerrados. O choro continuava, desesperado, interminável. Jogou o edredom para o lado e levantou com irritação a ferver no peito. Desceu as escadas de mármore descalço, cada passo uma sentença, cada segundo daquele barulho a arranhar-lhe os nervos.
Quando chegou à lavanderia, a cena paralisou-o. Beatriz estava sentada no chão frio, de costas para ele, embalando o bebê contra o peito. Vestia um roupão desgastado, os pés descalços, o cabelo preso num rabo-de-cavalo desfeito. Cantava baixinho, uma melodia trémula, entremeada por sussurros: “Meu amor, a mãe está aqui. Por favor, dorme.”
O bebê chorava mais alto. António sentiu a raiva subir-lhe pela garganta, mas algo o impediu de falar. Talvez fossem os ombros dela a tremer ou a forma como segurava o filho com tanta força, como se temesse que ele desaparecesse. Pigarreou. Beatriz virou-se de repente, os olhos vermelhos e inchados.
Levantou-se depressa, segurando o bebê desajeitadamente. “Senhor Sousa, peço desculpa. Eu tentei. Ele não pára. Não sei o que fazer. Já dei a mamadeira, já mudei a fralda, já…” A voz de António saiu mais suave do que pretendia: “Deixe-me segurá-lo um pouco.”
Beatriz hesitou antes de estender os braços. António pegou na criança com cuidado. Era tão leve, tão frágil. O choro continuou por instantes, mas quando ele ajeitou o bebê contra o peito e começou a balançá-lo devagar, algo aconteceu. O choro diminuiu, transformou-se num soluço, depois silêncio. O bebê encostou a cabecinha no ombro de António e fechou os olhinhos, exausto.
Beatriz arregalou os olhos. “Como conseguiu?” António não respondeu. Olhava fixamente para o rostinho adormecido. Sentiu algo apertar-lhe o peito – dor e alívio misturados, como uma ferida antiga tocada após anos intocados. Beatriz deu um passo em frente, os olhos marejados: “Obrigada. Não sei o que dizer.”
Os olhares cruzaram-se. Por um instante, tudo parou. Ele viu nela algo que nunca tinha visto – não fragilidade, mas força silenciosa. E ela viu nele o que ninguém mais via – uma tristeza tão profunda que precisava ser escondida atrás de muralhas. O bebê ressonou levemente.
António piscou, quebrando o momento, e devolveu a criança com cuidado excessivo. “Ele só estava cansado demais para dormir”, murmurou, evitando o olhar dela. Virou-se para sair quando o seu olhar caiu sobre a mesinha lateral – sobre a foto emoldurada que sempre ali estava, esquecida entre panos de limpeza. A esposa sorrindo, segurando a barriga de sete meses. O bebê que nunca nascera.
António congelou. Beatriz seguiu o seu olhar e viu a foto. A compreensão substituiu a gratidão no seu rosto. Ele percebeu o que ela tinha visto. Algo dentro dele entrou em pânico. “Isto não pode acontecer outra vez”, disse, a voz dura, quase cruel. Deu dois passos largos até à foto, virou-a com violência e encarou Beatriz com olhos vazios. “Nunca mais.”
Ela recuou, assustada. “Senhor Sousa, eu não quis…”
“Cuide do seu filho e mantenha-o quieto”, cortou ele. Saiu sem olhar para trás, subindo as escadas depressa demais, os punhos cerrados. Trancou-se no quarto e apoiou as costas na porta, respirando como se tivesse corrido quilómetros.
Beatriz ficou parada na lavanderia, segurando o bebê adormecido, com lágrimas a escorrerem em silêncio. Olhou para a foto virada e compreendeu que tinha acabado de ver um homem partido. Um homem com medo de sentir.





