O relógio de parede na varanda de mármore marcava meia-noite e meia quando o Mercedes preto de João Costa subiu silenciosamente a longa entrada circular da sua mansão no bairro de Alfama, em Lisboa.
Não devia chegar tão cedo. A reunião do conselho terminara antes do esperado, e por capricho, decidira surpreender a filha, Leonor. A menina tinha apenas seis anos, viva e delicada, com um par de muletas rosas decoradas com autocolantes de borboletas que orgulhosamente chamava de “asas mágicas”.
Sempre que chegava sem aviso, ela vinha a coxear até ele com aquele sorriso radiante que lhe derretia o coração. Mas naquele dia — não havia risos, não havia passos, nenhuma voz alegre a gritar: “Pai!”
Em vez disso, ouviu algo que lhe gelou o sangue.
O choro de uma criança.
Não um choramingar suave, nem uma queixa de birra. Era algo mais profundo, mais cru. O choro do medo.
E depois, outro som — cortante, frio, sem misericórdia. A voz de uma mulher.
“Burra, desastrada! Olha o que fizeste! Este tapete persa vale mais do que a tua miserável existência!”
João parou de repente, a mão ainda no puxador da porta.
A voz era de Beatriz — a sua esposa.
Casara com ela dois anos antes, na esperança de que trouxesse calor à sua casa destroçada após a morte da primeira mulher, Catarina, vítima de cancro. Catarina fora o amor da sua vida, e quando partiu, Leonor tinha apenas quatro anos — frágil, com o coração partido, a precisar desesperadamente do amor de uma mãe.
Beatriz parecera perfeita — elegante, educada, inteligente. Dissera todas as palavras certas. Representara o papel.
Até àquele dia.
De dentro, chegou a voz trémula da filha:
“Por favor, mãe Beatriz, não foi de propósito! Só queria água… as minhas muletas escorregaram…”
Depois — um baque.
Um suspiro sufocado.
E silêncio.
Algo dentro de João quebrou.
Arrombou a porta.
A cena que encontrou ficaria para sempre gravada na sua memória.
A sala de estar — normalmente impecável — estava desarrumada. Um copo partido no tapete, água a espalhar-se como uma mancha de culpa. E no meio de tudo, sentada no chão, a pequena Leonor agarrava o seu ursinho de pelúcia, os ombros a tremer de soluços. As muletas rosas estavam abandonadas ao lado.
Por cima dela, Beatriz — radiante e perfeita como sempre, o vestido de marca intocado pelo caos.
Só o rosto a traía — retorcido de desprezo.
“Beatriz!” A voz de João ecoou pela casa, tão forte que os copos de cristal no bar tilintaram.
“Que raio se passa aqui?!”
Ela virou-se, surpreendida. Por uma fração de segundo, João viu algo nos seus olhos — não medo, nem culpa, mas algo muito mais sombrio. Ódio.
Depois, como se nada tivesse acontecido, alisou o cabelo e respondeu com aquela falsa calma adocicada que um dia o enganara.
“Oh, querido, chegaste mais cedo! Não foi nada. A Leonor teve um pequeno acidente com a bebida, só isso. Estava a tentar ensiná-la a ter mais cuidado com as coisas caras.”
João não disse nada. Olhou para a filha — o cabelo louro desgrenhado, as faces marcadas pelas lágrimas. Os olhos azuis — os olhos de Catarina — estavam cheios de confusão e dor.
Ajoelhou-se ao lado dela, pegando-lhe nas mãos trémulas.
E foi então que viu — marcas vermelhas a envolver-lhe os pulsos pequenos.
Alguém a tinha agarrado com força.
“Quem te fez isto?” sussurrou.
Leonor tremia. “Pai… por favor, não fiques zangado. Eu só… só queria água…”
Sentiu o peito apertar. “Ela magoou-te?”
O silêncio dela foi resposta suficiente.
Quando se virou para Beatriz, a voz já não era alta — mas tão fria que parecia congelar o ar.
“Faz as malas. Tens uma hora.”
O rosto dela empalideceu. “O quê? Não podes estar a falar a sério! Por causa desta dramatização? João, ela está a manipular-te! Está sempre a chorar, sempre a fazer-se de vítima. Não podes deixar que uma criança mimada se meta entre ti e a tua mulher.”
Ele levantou-se devagar, pegando em Leonor ao colo. “A minha filha não é mimada. E tu… nunca mais lhe tocarás.”
Enquanto subia as escadas, o tom de Beatriz mudou — de indignação para veneno.
“Vais arrepender-te, João Costa. Não fazes ideia do que estás a perder. Aquela menina vai arruinar a tua vida — tal como a mãe quase te arruinou.”
As palavras dela ecoaram atrás dele como uma maldição.
No quarto, Leonor enterrou o rosto no seu ombro. “Pai,” sussurrou, “porque é que a mãe Beatriz me odeia? Fiquei com ela zangada porque sou… diferente?”
João sentiu um nó na garganta. “Não, meu amor. Não fizeste nada de errado. Tu és perfeita — exatamente como és.”
Ela acenou fracamente e abraçou-o com mais força.
E naquele momento, ele fez um voto silencioso.
Quaisquer segredos que Beatriz escondesse — qualquer escuridão por trás da máscara polida — ele iria descobrir. E garantiria que ninguém voltaria a magoar a sua filha.
Três horas depois, a mansão estava silenciosa.
Beatriz tinha ido embora — pelo menos por agora.
João estava sozinho no escritório, o fogo a lançar sombras inquietas nas paredes. Na secretária, uma fotografia emoldurada: Catarina, a sorrir, com a bebé Leonor nos braços.
Durante anos, construíra impérios, conquistara mercados, ganhara milhões. Mas nada — nada — se comparava ao peso daquele momento, em que percebera que falhara em proteger a única pessoa que verdadeiramente importava.
Pegou no telefone e ligou ao chefe de segurança.
“Duarte,” disse calmamente. “Preciso de tudo sobre Beatriz Co”Varreste cada canto da sua vida, porque a partir de hoje, ela não vai ter um único lugar onde se esconder.”





