**Diário Pessoal**
Hoje cheguei mais cedo a casa e não acreditei no que vi. Eu, Rodrigo Almeida, costumo chegar depois das 21h, quando todos já estão a dormir. Mas hoje, a reunião com os investidores em Lisboa acabou mais cedo e decidi ir direto para casa sem avisar. Ao abrir a porta da mansão no bairro do Restelo, travei no limiar, incapaz de processar o que via.
Lá, no meio da sala, estava Joana, a empregada doméstica de 28 anos, de joelhos no chão molhado com um pano na mão. Mas não foi isso que me paralisou. Ao seu lado, o meu filho Tomás, de apenas 4 anos, estava de pé, apoiado nas suas pequenas muletas roxas, segurando um pano de cozinha e tentando ajudá-la.
“Tia Joana, eu consigo limpar esta parte aqui!”, dizia o menino loiro, esticando o bracito com dificuldade.
“Calma, Tomás, já ajudaste muito hoje. Que tal sentares-te no sofá enquanto eu acabo?”, respondia Joana com uma voz suave que eu nunca lhe tinha ouvido antes.
“Mas eu quero ajudar! Tu sempre dizes que somos uma equipa!”, insistia ele, tentando manter o equilíbrio nas muletas.
Fiquei ali, imóvel, a observar sem ser notado. Havia algo naquela cena que me comoveu de uma forma inexplicável. O Tomás estava a sorrir—algo que raramente via em casa.
“Está bem, meu ajudante, mas só mais um bocadinho, está bem?”, disse Joana, cedendo.
Foi então que o Tomás me viu parado à porta. O rostinho iluminou-se, mas havia surpresa e um pouco de medo nos seus olhos azuis.
“Pai, chegaste cedo!”, exclamou, virando-se rápido e quase perdendo o equilíbrio.
Joana levantou-se assustada, deixando cair o pano, limpou as mãos no avental e baixou a cabeça.
“Boa noite, senhor Rodrigo. Eu… já estava a acabar a limpeza…”, balbuciou, nervosa. Eu ainda estava a tentar entender o que se passava.
Olhei para o Tomás, ainda com o paninho, depois para Joana, que parecia querer desaparecer.
“Tomás, o que estás a fazer?”, perguntei, tentando manter a calma.
“Estou a ajudar a tia Joana, pai! Olha só!” Deu uns passinhos trémulos na minha direção, orgulhoso. “Hoje consegui ficar em pé quase cinco minutos sozinho!”
Voltei a olhar para Joana, à procura de uma explicação. Ela torcia as mãos, nervosa.
“Cinco minutos?”, repeti, surpreso. “Como assim?”
“A tia Joana ensina-me exercícios todos os dias. Ela diz que se eu treinar muito, um dia vou conseguir correr como os outros meninos!”, explicou o Tomás, entusiasmado.
O silêncio ficou pesado. Sentia uma mistura de raiva, gratidão e confusão.
“Exercícios?”, questionei.
Joana finalmente ergueu o olhar, os olhos castanhos cheios de medo.
“Senhor Rodrigo, eu só estava a brincar com o Tomás. Não quis fazer nada de errado…”
“Pai, não despeças a tia Joana!”, interrompeu o Tomás, colocando-se entre nós. “Ela é a melhor! Nunca desiste de mim, mesmo quando eu choro porque dói. Ela diz que eu sou forte como um guerreiro!”
Algo apertou-me no peito. Quando foi a última vez que tinha visto o meu filho tão feliz? Quando foi a última vez que tinha passado mais de cinco minutos a conversar com ele?
“Tomás, vai para o teu quarto. Preciso falar com a Joana.”
O Tomás hesitou, mas depois de um sorriso encorajador da Joana, obedeceu. Antes de subir, porém, gritou:
“A tia Joana é a melhor pessoa do mundo!”
Fiquei sozinho com Joana na sala. Aproximei-me, reparando pela primeira vez nas manchas de humidade nas calças dela e nas mãos vermelhas de tanto esfregar.
“Desde quando é que isto acontece?”, perguntei.
“Senhor Rodrigo, os exercícios com o Tomás… começaram há seis meses. Mas juro que nunca deixei o meu trabalho por causa disso. Faço-os na hora de almoço ou depois de terminar tudo.”
“E não recebes extra por isso.”
“Não, senhor. E não peço nada. Gosto de brincar com o Tomás. Ele é especial.”
“Especial como?”
Joana sorriu pela primeira vez desde que eu cheguei.
“É teimoso, senhor. Mesmo quando dói, ele não desiste. E tem um coração enorme. Preocupa-se se estou cansada ou triste…”
Senti novamente aquela pressão no peito. Quando foi a última vez que tinha reparado nessas qualidades no meu próprio filho?
“Joana, onde está a Andreia?”, perguntei.
“A senhora Andreia saiu para jantar com as amigas. Disse que voltava tarde.”
Olhei à volta da sala, tudo estava impecável. Até as plantas pareciam mais vivas.
“Joana, posso fazer-te uma pergunta pessoal?”
“Claro, senhor.”
“Por que trabalhas como empregada doméstica? Claramente tens conhecimentos de fisioterapia, és boa com crianças…”
Joana sorriu com tristeza.
“Porque não tenho diploma, senhor. Aprendi tudo a cuidar do meu irmão mais novo, o David, que nasceu com problemas nas pernas. Mas isso não conta para nada oficial. E eu preciso de trabalhar—a minha mãe e o David dependem de mim.”
Senti uma estranha mistura de admiração e vergonha. Ali estava uma jovem a trabalhar duro para sustentar a família e ainda a encontrar tempo para cuidar do meu filho com tanto amor.
“E nunca pensaste em estudar? Fazer um curso de fisioterapia?”
“Com que dinheiro, senhor? Saio de casa às 6h, chego aqui às 7h30, trabalho até às 18h… Os fins de semana faço limpezas noutras casas. Quando é que teria tempo?”
Fiquei em silêncio. Nunca tinha pensado na vida dela fora destas paredes.
“Joana, posso ver os exercícios que fazes com o Tomás?”
“Ele já está de pijama, senhor… Normalmente fazemos de manhã antes das aulas.”
“De manhã?”
“Sim. Chego às 7h30, preparo o pequeno-almoço e treinamos no jardim antes de vocês acordarem.”
Percebi então que não sabia nada da rotina do meu filho. Saía de casa às 7h e voltava depois das 21h.
“E ele gosta?”
“Adora, senhor! Ontem ficou quase três minutos sem muletas!”
Fiquei espantado. O fisioterapeuta dissera que isso demoraria meses.
“Talvez ele esteja mais motivado agora… Quer impressionar o senhor.”
“Impressi”Então, olhei para ela e disse, ‘Joana, tens um emprego aqui enquanto quiseres—não como empregada, mas como parte da nossa família’.”





