O medalhão de prata em forma de estrela fez o coração da Dona Beatriz Mendes, uma senhora de 82 anos, parar por um instante. Tinham passado mais de 30 anos desde a última vez que vira aquela joia, e agora estava pendurado numa corrente fina no pescoço de uma jovem empregada de café que lhe servia um galão numa pastelaria nos arredores de Lisboa.
“Menina,” sussurrou Beatriz com voz trémula quando a rapariga deixou a chávena na mesa. “Sim, senhora?” respondeu a jovem com um sorriso amável. “Esse medalhão… onde o arranjou?” A rapariga, de uns 25 anos, levou instintivamente a mão ao colar. O cabelo castanho estava apanhado num carrapito simples. Os olhos, de um verde intenso, brilhavam tal como os de Margarida.
“Foi da minha mãe. Deixou-me como lembrança. Porque pergunta?” Beatriz não respondeu de imediato. Fitava cada traço daquela jovem, o arco das sobrancelhas, a expressão dos olhos… tudo lhe lembrava Margarida. “Como se chama, minha querida?”
“Sofia. Sofia Almeida. E a minha mãe… Margarida Almeida. Faleceu há cinco anos.”
O mundo de Beatriz girou. Margarida, sua filha, aquela que desaparecera há três décadas depois de uma discussão acesa. E Almeida, o apelido daquele rapaz músico a quem Beatriz proibira de casar com a filha.
“Margarida…” murmurou a idosa com um nó na garganta. “Conheceu a minha mãe?” Sofia arregalou os olhos. “Talvez… Sente-se, por favor. Tenho algo muito importante para lhe contar.”
Desconcertada, Sofia sentou-se à frente dela. A pastelaria estava quase vazia, apenas alguns clientes nas mesas do fundo.
“Esse medalhão,” disse Beatriz, apontando, “chama-se Estrela-do-Mar. Foi feito por encomenda numa ourivesaria do Chiado há mais de 35 anos. O meu falecido marido, António, mandou-o fazer para o nosso aniversário de casamento.”
Sofia franziu a testa. “E como foi parar às mãos da minha mãe?”
“Porque eu o dei à minha filha no seu 18º aniversário. À minha filha, que se chamava Margarida.” O rosto de Sofia empalideceu.
“Está a dizer que…”
“Sim, querida. Acho que a tua mãe era a minha filha. E isso faz de ti a minha neta.”
Um silêncio pesado caiu entre as duas. Sofia olhava para aquela senhora elegante, de casaco caro e joias discretas, tentando processar o que ouvia.
“Não pode ser… A minha mãe nunca falou em ter família rica. Vivíamos com o suficiente, nada mais.”
“Conta-me dela,” pediu Beatriz, com voz suplicante. “Como era? O que fazia?”
Sofia hesitou, mas começou a falar. “A mamã era linda. Cabelo castanho, olhos verdes como os meus. Adorava pintar, mas nunca vendeu os quadros. Trabalhava numa florista e às vezes costurava para ganhar mais um pouco. Do passado falava pouco… só dizia que crescera numa família abastada, mas que cortara laços.”
“E o teu pai?” perguntou Beatriz, quase sem voz.
“Manuel Almeida. Era músico, tocava guitarra em tasquinhas. Morreu quando eu tinha sete anos. Tuberculose.”
Beatriz fechou os olhos. Manuel Almeida, aquele jovem que considerara indigno da filha. Um talento, sim, mas sem futuro ou posses. Fora a razão pela qual Margarida saíra de casa.
“Depois da morte dele, a mamã criou-me sozinha. Foi difícil, mas ela dizia sempre que bastávamos uma à outra. Nunca falou da família… só às vezes olhava para o medalhão e ficava triste. Dizia que era a lembrança de um tempo em que fora feliz.”
Com mãos trémulas, Beatriz tirou o telemóvel da mala e mostrou uma foto antiga: Margarida aos 18 anos, com o medalhão a brilhar no pescoço.
“Meu Deus,” exclamou Sofia, tapando a boca. “É ela! De onde é esta foto?”
“Porque eu sou a mãe dela. Sou a tua avó.”
Sofia olhou para a foto, depois para Beatriz, e novamente para a foto. O parecido era inegável.
“Porque é que ela nunca falou de si? Porque se zangaram?”
“Eu opus-me ao casamento com o teu pai. Achei que a estava a proteger, impedindo-a de se juntar a um homem sem dinheiro. Orgulhosa e cega, fui. Margarida escolheu o amor e foi-se embora. Nunca mais a vi.”
“E procurou-a?”
“Claro! Contratei detetives, ofereci recompensas, revi hospitais… mas era como se tivesse desaparecido na bruma.”
Sofia engoliu em seco. “E agora… o que quer de mim?”
“Conhecer-te. Saber como vives, o que sonhas. E, se permitires, entrar na tua vida. Ser a avó que devia ter sido.”
Sofia olhou para as suas mãos ásperas do trabalho, depois para as de Beatriz, delicadas e adornadas com anéis.
“E se estiver enganada? Se eu não for sua neta?”
“Então ficarei feliz por ter conhecido uma jovem admirável que me lembrou a minha filha. Mas aquele medalhão é único. Ninguém mais o teria.”
Sofia respirou fundo. “O que propõe?”
“Vem amanhã a minha casa. Traz o teu filho, se quiseres. Mostras-me o que guardas da tua mãe e, se desejares, fazemos um teste de ADN.”
Sofia hesitou, mas aceitou.
No dia seguinte, a mansão dos Mendes surpreendeu Sofia em cada detalhe. Por trás dos portões de ferro, jardins perfeitos, roseiras e fontes que pareciam de um palácio. O pequeno Leo, de oito anos, apertou a mão da mãe.
“Mãe, temos mesmo de vir aqui?”
“Sim, meu amor. Esta senhora pode ser da nossa família.”
Um mordomo levou-os à biblioteca, onde Beatriz os esperava, impecável.
“Sofia, querida. E este deve ser o Leo.” O menino acenou timidamente.
“Gostas de ajedrez, não é? Tenho um tabuleiro lindo, oferecido por um grande mestre.”
Os olhos do miúdo brilharam.
Mas antes, continuou Beatriz, quero mostrar-te algo. Abriu álbuns de fotos antigas.
“Esta é a tua mãe, Margarida. Tinha 15 anos aqui. E esta, no seu baile de liceu…”
Sofia segurou a respiração. A semelhança era impressionante.
Leo, curioso, aproximou-se. “É bonita… Parece a mãe.”
“Sim, são iguais,” respondeu Beatriz, acariciando-lhe o cabelo.
Sofia abriu uma caixa que trouxera. Dentro, algumas fotografias, um diário e documentos. Era tudo o que restara da mãe.
Beatriz pegou no registo de nascimento de Margarida. Lá estavam os nomes dos pais: António e Beatriz Mendes.
“É a prova,” murmurou, comovida.
Folheou o diário e leu um trecho aleatório, escrito em letra juvenil:
“A mãe nunca entendeu o amor. Para ela, tudo é alianças e conveniências. Mas com o Manuel, mesmo pobre, sinto-me viva. O coração dele vale mais que fortuna nenhuma.”
Lágrimas encheram os olhos de Beatriz.
“Nunca lhe dei essa chance…”
Nesse momento, a porta abriu-se deNo mesmo instante, o filho de Beatriz, Rodrigo, entrou furioso na biblioteca, mas ao ver o diário e as cartas que a irmã nunca enviara, seu orgulho afinal cedeu, e abraçou a sobrinha que nunca conhecera, selando assim o reencontro de uma família que o tempo e o rancor separaram.





