Depois de 730 dias árduos na linha da frente, Francisco Mendes regressou a casa, o coração cheio de esperança e expectativa. Sonhava com o reencontro com a sua amada filha, Beatriz, e com o abraço da sua esposa, Mariana. Mas ao empurrar o portão de ferro azul enferrujado da sua antiga casa, a realidade que o aguardava era um pesadelo para o qual nunca estaria preparado.
O quintal, outrora cheio de risos e vida, estava coberto de ervas daninhas, e a sua pequena menina encolhia-se num canto, negligenciada como lixo abandonado. Mariana, vestida com um vestido de noiva imaculado, estava de mãos dadas com outro homem, o rosto iluminado por uma alegria que devia ter sido reservada para a sua família. A visão partiu o coração de Francisco em mil pedaços, cada um ecoando a dor da traição.
Ao avançar, a multidão reunida ficou em silêncio, os olhos arregalados de espanto. As mãos de Francisco, ainda marcadas pelos calos da guerra, cerraram-se em punhos enquanto lutava para compreender a cena à sua frente. A casa, que um dia fora um refúgio, agora parecia uma prisão de memórias das quais nem tentava fugir.
Com cada passo em direção à varanda, lembrava-se dos risos que um dia enchiam aquelas paredes, das histórias antes de dormir, do calor da sua família. Mas agora, as janelas estavam fechadas e as cortinas corridas, como uma barreira entre a vida que conhecera e a realidade fria que enfrentava. Bateu à porta, mas ninguém respondeu. O silêncio era ensurdecedor, um lembrete cruel da vida pela qual sacrificara tudo.
Francisco virou-se para a vizinha, uma jovem chamada Paula, que alugava a casa ao lado. Os seus olhos encheram-se de surpresa e pena ao reconhecê-lo. “Francisco, és tu?” perguntou, hesitante. “Onde está a Mariana?” exigiu ele, a voz rouca e baixa. A expressão de Paula mudou, e ela mordeu o lábio, olhando em volta como se tivesse medo de dizer a verdade. “Ela foi-se embora… há mais ou menos um ano e meio,” admitiu finalmente. “Deixou a Beatriz com a irmã, disse que voltava, mas nunca mais a viram.”
O coração de Francisco afundou-se. Como é que Mariana abandonara a própria filha? A sua mente fervilhava de perguntas, cada uma mais dolorosa que a anterior. “Porque é que ela foi embora?” perguntou, a voz pouco mais que um sussurro. Paula abanou a cabeça, os olhos inquietos. “Não sei. Alguns diziam que estava deprimida, outros achavam que estava em apuros. Mas ela nunca falou com ninguém.”
O vento frio varreu o quintal, trazendo o cheiro a sal do mar próximo. Francisco sentiu o peso do desespero sobre ele, mas não podia deixar-se afundar. Tinha de encontrar a Beatriz. Ela precisava dele agora mais do que nunca.
Com a ajuda de Paula, descobriu que a irmã de Mariana, Leonor, vivia ali perto. Seguiu rapidamente para o antigo prédio, o coração a bater entre a esperança e o medo. Ao bater à porta, a escuridão lá dentro era palpável. Empurrou a porta e entrou num mundo que lhe parecia estranho e destroçado.
Dentro de casa, o apartamento estava uma desordem — embalagens de bolachas espalhadas pelo chão, latas de cerveja vazias sobre a mesa, e a televisão a gritar sem imagem. Enquanto olhava em volta, o coração apertou ao imaginar Beatriz a viver naquelas condições. E então viu-a — encolhida debaixo da mesa de jantar, agarrada a um urso de peluche velho, os olhos arregalados e sem pestanejar.
“Beatriz,” chamou ele, suavemente, ajoelhando-se. Ela não reagiu de imediato, apenas o encarou com uma mistura de confusão e saudade. “Pai?” sussurrou, a voz quase inaudível. “Voltaste por mim?”
“Sim, minha querida, estou aqui,” respondeu, a garganta apertada de emoção. Abriu os braços, e ela rastejou para o seu colo, agarrando-o como se fosse a sua tábua de salvação. Naquele momento, tudo o resto desvaneceu-se — o caos, a traição, a dor. Estavam apenas ele e a sua pequena menina, finalmente reencontrados depois de dois longos anos.
Mas enquanto a segurava, a realidade da situação começou a pesar. O apartamento era escuro e inóspito, um contraste gritante com o calor do lar que imaginara. “Já comeste?” perguntou, gentilmente, e ela abanou a cabeça. Sem hesitar, ergueu-a nos braços, o corpo dela mais leve do que se lembrava.
A cozinha estava vazia, a única comida uma caixa de cereais virada no chão. O coração de Francisco partiu-se ao vê-la. Rapidamente aqueceu água e preparou uma sopa instantânea, fazendo o melhor que podia. Ao colocar o prato à frente de Beatriz, incentivou-a a comer. Ela deu uma dentada pequena, os olhos ainda cheios de incerteza.
Foi então que a porta se abriu violentamente, e uma mulher desgrenhada entrou, carregando um saco com garrafas de álcool. “Que raio se passa aqui?” rosnou, a voz áspera e irritada. Francisco levantou-se, os instintos protectores a acenderem-se. “Sou o pai da Beatriz,” disse, firme.
A mulher, Leonor, ficou paralisada, o reconhecimento a surgir no rosto. “Francisco? Pensei que estivesses morto ou algo assim,” riu-se secamente, ignorando a gravidade da situação. “A Mariana largou a miúda aqui e desapareceu. Eu tenho a minha própria vida, sabes?” A raiva cresceu dentro de Francisco ao confrontá-la sobre a negligência que Beatriz sofrera.
“Não te é permitido abandoná-la e fingir que está tudo bem,” disse, a voz firme. Leonor encolheu os ombros, indiferente ao peso das suas ações. “Leva-a. Não me interessa. Só não me metas em tribunal.”
Francisco não precisou que lhe dissessem duas vezes. Pegou em Beatriz ao colo e saiu do apartamento, decidido a dar-lhe a vida que merecia. Enquanto se afastavam, Beatriz aconchegou-se a ele, os pequenos braços apertando-lhe o pescoço. “Pai, vamos para casa?” perguntou, a voz cheia de esperança inocente.
“Sim, minha querida. Vamos para casa,” respondeu, o coração a inchar de amor e tristeza. Mas enquanto conduzia pela cidade, Francisco não conseguia sacudir o desconforto. Precisava de um lugar seguro para ficarem, um sítio onde Beatriz pudesse curar-se e crescer.
A sua mente correu por amigos antigos e companheiros, mas todos tinham seguido em frente. Foi então que um nome surgiu — João Caldeira, um ex-polícia e aliado de confiança. Marcou o número dele e, para seu alívio, o amigo atendeu sem hesitar.
“Preciso de um sítio para ficar esta noite. Podes ajudar?” perguntou Francisco, a voz firme. “Claro. Terceiro andar, a porta está aberta,” respondeu João, a voz sonolenta.
Francisco conduziu até ao velho prédio, o cheiro familiar a humidade e idade enchendo o ar. Carregou Beatriz para dentro, o pequeno corpo dela a repousar contra o seu enquanto percorria o corredor estreito. Ao deitá-la na cama, uma onda de paz inundou-o. Era um novo começo.
Nos dias que se seguiram, Francisco trabalhou sem descanso para sustentar Beatriz. Matriculou-a na escola, onde elaE, enquanto o sol se punha sobre a cidade, ele olhou para a filha, agora dormindo serenamente, e soube que, apesar de tudo, o amor deles era inquebrável.





