**Diário Pessoal**
Há dias em que acordamos com a sensação de que algo vai acontecer. Não algo bom nem ruim, apenas uma mudança no ar. Foi assim naquela segunda-feira de fevereiro. A manhã começou como sempre: fiz café, e o Pedro já estava à mesa, grudado no telefone. Calado. Só os dedos batiam nervosamente na madeira.
“Beatriz, olha…” — ele finalmente quebrou o silêncio. — “Amanhã vou viajar.”
A colher quase escorregou da minha mão.
“Para onde?”
“Para o Algarve. Sol, mar, descansar finalmente. Já tenho o bilhete.”
Fiquei ali, mexendo o café que esfriava, sentindo os pensamentos se embolarem. Dois anos economizando para uma viagem juntos! Cada mês cortando despesas, deixando pra trás coisas que queríamos. Até o casaco que ele havia prometido eu adiei por causa dessa viagem.
“E eu? Ainda não confirmaram minhas férias.”
“E então?” Ele encolheu os ombros. “Acha que é fácil para mim? Os nervos já não aguentam mais esta monotonia.”
Os nervos… E os meus não importam?
“Mas o dinheiro era nosso, juntamos juntos…”
“E daí?” Ele se levantou brusco. “Eu também trabalho e decido quando descansar!”
Foi então que desconfiei pela primeira vez. Nos últimos meses, ele estava diferente. O telefone sempre perto, até no banho. Antes, deixava-o em qualquer canto.
Vejo-o arrumar a mala. Um calção novo — que notei no armário — e uma camisa colorida, nada do seu estilo. Quando é que comprou isso?
“Se sobrar dinheiro, trago-te um ímã,” disse, fechando a mala.
Um ímã… Que generosidade.
A porta bateu. Fiquei sozinha. Pensei: será que estou exagerando? Talvez ele precise mesmo de um descanso? Só não pensou em mim.
Estava ali, refletindo, quando o telefone dele tocou. Esquecido na pressa. O ecrã acendeu — uma mensagem. A senha escondia o resto, mas as primeiras palavras saltavam: “Meu amor, estou no aeroporto. Espero-te no…”
“Meu amor.” Há cinco anos que não me chamava assim. Dizia que éramos adultos, sem espaço para infantilidades.
Dez minutos depois, voltou — pelo telefone. Viu-me e o olhar ficou desconfiado.
“O que estás a fazer?”
“Estou em casa,” respondi. “Problema?”
Pegou o telefone, verificou se mexi em algo. Deu-me um beijo no topo da cabeça, paternalista.
“Não fazes birra. Quando voltar, trago-te uma lembrança.”
E foi-se.
Fiquei sentada. O coração acelerado: quem era esse “amor”? Por que tanta tensão?
Num impulso, vesti-me rápido e fui para o aeroporto. O táxi era caro, mas já não importava. Queria a verdade.
E vi. Abraços, risos, uma rapariga de vinte e cinco anos — cabelo comprido, corpo esbelto, vestindo a camisa que havia visto no nosso armário. O Pedro sussurrava algo no ouvido dela, e ela ria, encostando-se a ele.
Dezoito meses economizando para estarmos juntos. E ele planejava tudo com outra.
Quis aproximar-me, gritar, talvez até bater. Mas já seguiam para o embarque. Tarde demais.
Saí, sentei-me num banco e chorei. Não apenas lágrimas — soluços como se o coração fosse arrancado. Pessoas olhavam, mas pouco me importava.
Começou a chover — primeiro miudinha, depois forte. Fiquei ali, gelada, mas sem forças para levantar.
Uma voz:
“Menina, desculpe….”
Virei-me — um homem, roupa gastas, rosto marcado pelo frio.
“Precisa de ajuda?” Perguntou, preocupado.
“Eu?” Ri-me sem humor. “Já nada me ajuda.”
“Não é tão ruim como parece,” disse ele, suave. “Por acaso… não conhece algum trabalho? Nem que seja temporário?”
Olhei para ele e pensei: ambos perdemos hoje. Só que ele, pelo menos, não esconde a derrota.
“Quer saber?” Decidi. “Vamos para minha casa. Come algo decente, aquece-te.”
“A sério?” Ele estranhou. “Mas não me conhece.”
“É um maníaco?” Perguntei.
“Não,” sorriu. “A vida é assim às vezes.”
“Então vamos. De qualquer forma, não há nada em casa — o Pedro comeu tudo antes de sair.”
No táxi, o motorista resmungou, mas ofereci mais dinheiro e ele acalmou-se.
No caminho, apresentou-se: Tiago. Engenheiro, perdeu o emprego, depois a casa. A mulher foi para a mãe, dizendo: “Quando tiveres trabalho, voltas.”
Entendi. Cada um com sua dor.
Em casa, ele encostou-se ao radiador, esquentando as mãos.
“Pode tomar um banho,” sugeri. “Toalhas no armário, roupão do Pedro está lá.”
“Tem certeza?” Ele hesitou.
“Tenho. O meu marido está num resort com a amante, o roupão está livre.”
Enquanto ele se lavava, aqueci sopa. Será que enlouqueci? Trazer um estranho? Mas o dia estava invertido, como se o mundo tivesse perdido o equilíbrio.
Quando saiu do banho, não acreditei. Outra pessoa. Uns quarenta anos, postura firme, olhos inteligentes. No roupão do Pedro, parecia meio ridículo — o meu marido era baixo e magro.
“Tem certeza que não é sem-abrigo?” Perguntei, observando-o.
“Claro que não,” sorriu. “Só passei por dificuldades.”
À mesa, conversámos. Tiago fora engenheiro numa empresa de construção, gerira projetos. Depois, veio a má fase: falência, salários atrasados, despedimento. Procurar emprego foi inútil — só queriam jovens, e ele já passava dos quarenta.
“As poupanças acabaram rápido,” suspirou. “A minha mulher aguentou um tempo, mas disse: ‘Não quero viver na pobreza.'”
“Amor até à primeira dificuldade,” concordei.
“Pois é.”
Contei-lhe a minha história: o aeroporto, a mensagem do “amor”, os dezoito meses de economias e a partida súbita do Pedro.
“E agora?” Perguntou.
“Divórcio. O apartamento foi herança da minha avó, tenho trabalho. Vou sobreviver.”
“E filhos?”
“Não aconteceu,” suspirei. “Ele sempre adiava, dizia que era cedo. Agora entendo — não queria mesmo.”
“Talvez seja melhor,” disse ele, cauteloso. “Com um marido assim…”
“Pois é. Pelo menos não preciso explicar a uma criança porque o pai foi passear com outra.”
Depois do jantar, pediu para ver as notícias — há tempos não as acompanhava. Aceitei. Fui para a cozinha arrumar, e quando voltei, sentei-me na poltrona e adormeci. Acordei de manhã — alguém cobriu-me com um cobertor. Tiago já não estava. Na mesa, um bilhete: “Muito obrigado. Salvou-me, literalmente. Quando arranjar trabalho, retribuirei.”
E senti uma tristeza. Como se algo importante e bom tivesse partido.
As semanas seguintes passaram num nevoeiro. Entreguei os papéis do divórcio. Juntei as coisas do Pedro, mudei as fechaduras — que saiba que esta casa já não é dele.
No trabalho, ficava até tarde. Os colegas estranhavam, mas em casa era pior — demasiadas memórias, demasiado vazio.
O Pedro ligou algumas**Diário Pessoal**
E no final, no dia da nossa pequena cerimónia à beira-mar, enquanto o Tiago segurava as minhas mãos e prometia um futuro sem mentiras, eu percebi que a vida, mesmo quando parece desabar, tem a estranha capacidade de reconstruir-se com algo ainda mais belo.