A guarda de segurança agarrou-a pelo pulso com tanta força que parecia que os ossos iam partir-se. Mas Mariana não chorou. Nunca chorava. Nem quando os pais morreram. Nem quando viveu na rua durante três anos. E muito menos agora. Como é que aquela rapariga bonita sem lar tinha acabado por roubar comida num casamento de luxo? Vamos descobrir juntos.
“Larga-me”, sussurrou com voz firme. Os seus olhos escuros ardiam com uma chama que fez o segurança hesitar. A elegante tenda do casamento ficou em silêncio. Duzentos convidados ricos, com roupas caras, viraram-se para olhar para a rapariga magra de calças rotas e camisa suja. Na mão livre, segurava um prato de arroz e frango que tinha apanhado da mesa. “Ladra!”, gritou alguém.
“Chamem a polícia!”, berrou outro. Foi então que uma voz cortou o alvoroço como uma faca. “Esperem.” Todos se viraram. O noivo aproximou-se. Alto e elegante no seu fato branco impecável, chamava-se Tiago e este devia ser o dia mais feliz da sua vida. Mas havia algo diferente no seu olhar. Tristeza, talvez. Ou raiva.
“Largue-a”, disse Tiago ao segurança. “Mas senhor, ela roubou comida do seu casamento”, protestou o guarda. Tiago olhou para Mariana. Olhou-a a sério—não para a roupa suja ou o rosto magro, mas para os seus olhos. E o que viu fez-lhe revirar o coração.
“Como te chamas?”, perguntou em voz baixa. Mariana ergueu o queixo. Não tinha vergonha. Estava com fome e comeu—era sobreviver.
“Mariana.”
Tiago repetiu o nome como se fosse estranho na sua língua, algo que não dizia há muito tempo. “Quantos anos tens?”
“Vinte e cinco.”
Uma mulher num vestido cor-de-rosa deslumbrante abriu caminho na multidão. Era Sofia, a noiva de Tiago, com o rosto corado de raiva.
“Tiago, o que estás a fazer? É o dia do nosso casamento. Manda-a embora!”
Mas Tiago não se mexeu. Continuou a olhar para Mariana. “Donde és?”
“Isso importa?”, respondeu Mariana, tentando manter a frieza, mas algo naquele homem fazia com que se sentisse estranha. Como se o conhecesse de algum lado.
“Importa”, sussurrou Tiago. “Mais do que pensas.”
Uma senhora idosa aproximou-se—Dona Amélia, a avó de Tiago. Pequena mas forte, com cabelo prateado e olhos sábios.
“Tiago”, disse com cuidado, “talvez devêssemos falar lá dentro.”
“Não”, respondeu ele, a voz cada vez mais firme. “Quero saber. Mariana, lembras-te de algo da tua infância, antes de viver na rua?”
O coração de Mariana acelerou. Porque é que ele perguntava aquilo?
“Vivia num orfanato. Os meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha sete anos. Porquê?”
Sofia agarrou o braço de Tiago. “Tiago, estás a assustar-me. O que se passa?”
Tiago afastou-se da noiva e aproximou-se de Mariana, tão perto que via as lágrimas nos seus olhos. “Mostra-me o ombro esquerdo.”
“O quê?” Mariana recuou.
“Por favor”, implorou ele, com uma voz que a fez ceder.
Lentamente, Mariana puxou a camisa para baixo. No ombro esquerdo, uma pequena cicatriz em forma de estrela. As pernas de Tiago fraquejaram, quase caiu.
“Meu Deus”, murmurou. “Meu Deus, és tu.”
Sofia gritou: “O que se passa?”
Dona Amélia aproximou-se, as mãos a tremer. “Tiago, não… não pode ser.”
“É”, disse ele, lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. “Avó, olha para ela. Olha bem.”
A avó fixou os olhos em Mariana—os seus olhos escuros, a forma como mantinha a cabeça erguida mesmo contra todos, a cicatriz.
“Impossível”, sussurrou Dona Amélia.
“Alguém me explica o que se passa?”, exigiu Mariana, mas até a sua voz tremia.
Tiago virou-se para os convidados, a voz clara e alta.
“Todos, tenho algo para dizer. Este casamento não pode acontecer.”
“O quê?!”, gritou Sofia.
Tiago olhou diretamente para Mariana. “Esta mulher… é minha irmã.”
A tenda explodiu em murmúrios. Gritos, exclamações. Sofia começou a chorar, mas Mariana ficou paralisada.
“Isso é impossível”, disse ela. “O meu irmão morreu no mesmo acidente que os meus pais. Disseram-me que ele morreu.”
“Não”, sussurrou Dona Amélia, de repente parecendo muito mais velha. “Tiago, disseram-te que a tua irmã tinha morrido. E a ti, Mariana, disseram que o teu irmão tinha morrido. Mas ambos estavam enganados.”
Tiago aproximou-se dela. “Lembro-me de ti. Brincávamos no jardim.”
O silêncio tomou conta da tenda enquanto os olhos de Mariana e Tiago se encontravam. O murmúrio da multidão desapareceu para Mariana, que só ouvia o próprio coração a bater. Seria possível?
A imagem da cicatriz queimava-lhe a mente. Sabia—havia algo nele, na sua voz, que despertava memórias enterradas.
Tiago estendeu a mão, hesitante. “Lembras-te do jardim? Ensinaste-me a andar de bicicleta. Atiraste-me à água do lago e tu riste como nunca.”
Mariana recuou. A mente dela estava nublada, os anos na rua tinham apagado quase tudo. Mas algo nas palavras dele fez-lhe estremecer.
“Não… não me lembro”, sussurrou, os olhos cheios de lágrimas. “Disseram-me que os meus pais morreram. E que o meu irmão também.”
Tiago abanou a cabeça. “Não, Mariana. Depois do acidente, todos pensaram que não havia sobreviventes. Mas tu… tu sobreviveste. A Dona Amélia e eu procurámos-te durante anos. Os orfanatos não ajudaram. Perdemos-te.”
Dona Amélia respirou fundo. “Foi uma época confusa. Os papéis perderam-se, ninguém sabia a verdade. Tentámos… mas eras só uma criança.”
“Esqueceram-se de ti”, acrescentou Tiago, suavemente. “Eu nunca o fiz. Nunca deixei de te procurar.”
Mariana ficou parada. O luxo, os convidados, Sofia—tudo desapareceu. O mundo parou.
“E agora?”, perguntou, a voz a falhar.
“Agora podes fazer parte da família que perdemos”, disse Tiago. “Se me deixares, podemos reconstruir o que nos tiraram. Não tens de estar sozinha.”
Uma lágrima escorreu-lhe pela face—não de tristeza, mas de alívio.
“Prometo que não te vou deixar partir”, sussurrou Tiago, segurando-lhe a mão. “Tu e eu… somos família. E nunca mais te vou perder.”
Sofia, ainda em choque, aproximou-se, o rosto menos tenso.
“Não sei o que esperar disto, Mariana. Mas talvez… precisemos todos de tempo.”
Dona Amélia abraçou Mariana, surpreendendo-a. “A vida nem sempre é justa, mas sempre dá uma segunda chance.”
O casamento não continuou. Mas algo maior começou—uma família renascida das cinzas do passado.
Anos depois, Mariana olhava para o pôr-do-sol no jardim da Quinta dos Monteiro, ondeNaquel momento, enquanto o sol se punha sobre os campos dourados, Mariana sentiu finalmente que, apesar de todas as cicatrizes, tinha encontrado não apenas um lar, mas um lugar onde pertencia.





